
Ensaio sobre partilha, linguagem e humanidade em O Grande Pão de João Pedro Porto, Edições Nova Mymosa, 2025.
Em 2018, arqueólogos encontraram restos de pão achatado numa escavação em Shubayqa, no atual Jordão, datados de cerca de 12.000 a 14.000 anos atrás. Esse pão foi feito por grupos nómadas caçadores-coletores, antes da Revolução Agrícola, o que mostra que o pão antecede o cultivo sistemático de cereais. A linguagem nasce da necessidade de comunicar, mas transforma-se com o desejo de partilhar. O pão pode ser considerado como o primeiro símbolo de união entre os povos. Todos o compreendem, todos o desejam, todos se reúnem em torno dele. E ao nomeá-lo, ao cantar sobre ele, ao colocá-lo no centro dos nossos rituais e metáforas, criamos poesia, linguagem que não apenas descreve o mundo, mas que o transforma, pois a palavra que se torna poesia é aquela que se oferece ao outro sem pretensão de domínio, apenas com o desejo de comunhão. Tal como o pão, a poesia só cumpre a sua função quando é dada, recebida, interiorizada. As culturas não nasceram da acumulação, mas da partilha. Como o pão é o resultado da transformação da terra pelo trabalho humano, a cultura é a expressão do que as comunidades constroem em comum, histórias, rituais, saberes, gestos. Partilhar o pão é, portanto, um ato cultural profundo, uma coreografia ancestral de cuidado, memória e pertença. Cada vez que o pão é repartido, perpetua-se uma tradição que liga gerações. O forno comunitário, a mesa familiar, o campo semeado por múltiplas mãos são todos atos culturais que resistem ao esquecimento e afirmam uma identidade viva. Onde há partilha, há cultura.
Em quase todas as tradições espirituais, o pão tem um lugar central. É símbolo do corpo, da oferenda, da graça. Porque no pão repartido revela-se o mistério que nos ensina que o sagrado não está no extraordinário, mas no essencial. Partilhar o pão é reconhecer a presença do divino no outro.
O pão é o poema da terra feita carne pelas mãos do homem. Nele se revela a alquimia da transformação do simples grão à dádiva que sustenta vidas. O pão une povos e constrói civilizações. Mais que alimento, é símbolo do eterno labor humano a moldar o mundo e a si mesmo.
O Grande Pão, de João Pedro Porto, é uma obra de poesia contemporânea que se destaca pelo seu mergulho em temas universais tratados de forma intensa e reflexiva, combinando existencialismo, lirismo filosófico e ironia na construção de uma voz poética que se interroga sobre o mundo, a sociedade e a condição humana.
O título funciona como metáfora, sugere sustento, mas também algo maior, simbólico, que transcende o quotidiano e convida a uma análise meditativa originando novos conceitos capazes de levar transformação ao universo social humano.
A obra explora, entre outros tópicos, a solidão, o tempo, a memória e o papel da poesia como um meio de resistência e reflexão sobre a realidade da vida moderna ocidental.
A linguagem de João Pedro Porto é marcada por precisão lexical rigorosa e por uma musicalidade que dialoga com o ritmo da oralidade, tornando a leitura simultaneamente densa e fluida.
Sou levado a considerar que este conjunto de poemas tende a desafiar os cânones da poesia convencional, propondo uma nova poética que ao interrogar o mundo, a sociedade e a condição humana, leva o leitor mais atento à transformação de um universo sentimental e emocional, muitas vezes subjugado por uma civilização que atira a poesia para o olvido, a fim de poder estender os seus tentáculos populistas e operar o ódio, sem encontrar oposição. Ora, Só O Grande Pão, de que nos devíamos alimentar, pode derrubar e recusar a ignorância que a todos manipula, promovendo o esquecimento de que só o amor é fio invisível que cose os dias, cria empatia e proximidade, derruba a superioridade racial e elimina nacionalismos, porque o pão é a primeira obra da terra transformada, em alimento de amor, por mãos humanas.
Ao amassar o trigo e fazê-lo fermentar, as comunidades humanas não apenas saciaram a fome, mas iniciaram e reivindicaram o caminho da cultura da partilha, em busca da construção de uma civilização que desejaram pacífica e solidária.

Henrique Levy é poeta e ficcionista com uma vasta obra publicada.
In Diário dos Açores, Paulo Viveiros-director.
Fotos do livro de João Pedro Porto,da página do Facebook da editora.

