Ângela de Almeida: uma voz própria e original (texto de apresentação pela Profa. Dra. Ana Gil).

“Agradeço, assim, à Ângela de Almeida o honroso convite que me fez para vir aqui apresentar-vos a sua obra mais recente, A janela de Matisse, que tem tanto para nos dizer.

Ângela é uma autora que dispensa apresentações. Tem uma vasta e diversa obra publicada, que passa pelo ensaio – é sobejamente conhecida sua produção ensaística sobre Natália Correia, por exemplo – e pela literatura, de que destaco aqui a sua obra anterior, de 2018, Caligrafia dos Pássaros, republicada em 2022 em edição bilingue, em português e em inglês, com a qual dialoga esta que vos vou apresentar hoje, o que torna notório a consistência e continuidade da autora em núcleos temáticos e poéticos profundos e complexos.

Lembra-me uma carta de Mallarmé a Verlaine, de novembro de 1885, em que Mallarmé defende que cada obra de um autor é um “fragmento” ou “farrapo” (palavras de Mallarmé) de um todo, e estes pedaços juntos constituem o Livro (com maiúscula) desse autor. Esta é, aliás, uma ideia muito repetida por diversos autores: a de que estão sempre a escrever o mesmo livro.

(…)

O nosso primeiro contacto com um livro – impresso – começa com o objeto-livro. O cheiro, as cores, a capa, o papel… E este que aqui temos perante nós revela uma cuidada apresentação gráfica, no desenho e nas cores vibrantes da capa, da autoria de Henrique Levy, também coordenador da N9na Poesia, a editora deste volume, que está também ela de Parabéns por mais esta edição, de capa dura, como já vai sendo raro no panorama editorial atual.

A N9ona Poesia é, aliás, uma editora de excelência e eu gostaria de aqui deixar a minha congratulação pelo trabalho que tem feito em prol da divulgação da literatura de excelência nos Açores. As suas edições primam não só pelo alto valor dos textos publicados como pelo extremo cuidado no aspeto gráfico do livro.

Esta minha vénia estende-se ao Sr. Ernesto Resendes, que se tem revelado uma figura fundamental no apoio à cultura e à literatura na nossa região.

E passemos ao conteúdo da obra.

O título, na minha perspetiva, é particularmente feliz, pois capta de imediato a atenção do leitor pelo mistério que encerra: que janela é esta? E porquê de Matisse?

O título convoca desde logo um diálogo interartes: A janela de Matisse. A janela é de Matisse. Ora, Matisse é um mestre do Fauvismo, das cores primárias vibrantes, daí a capa elaborada por Henrique Levy, com uma janela muito colorida em grande plano. Nesta janela predominam as cores primárias, fortes, vibrantes, e através dela entrevemos um pássaro em pleno voo, um dos leitmotivs, aliás, de todo o texto: o voo das aves, o movimento ascensional, a liberdade de pairar sobre as águas…

Matisse pintou janelas e também portas e entradas de espaços (a entrada de um Kasbah, por exemplo). Ou seja, pintou elementos de fronteiras entre lugares: a ombreira da porta e o caixilho da janela são a fronteira entre dois espaços – o interior e o exterior. A perspetiva mais comum deste pintor é a de mostrar a paisagem que se vê para além da janela ou da porta retratadas, fazendo o contraponto entre o espaço interior e o exterior – como sugere, aliás, a capa desta obra. E a janela (ou a porta) emoldura a paisagem, como se de um quadro dentro do próprio quadro se tratasse.

O que é então uma janela?

Uma janela é um convite à contemplação, ao alongamento do olhar para lá do nosso espaço, do espaço que nos circunscreve… Olhar à janela é sairmos de nós próprios, é termos disponibilidade para ver e sentir o Outro. Espreitar pela janela é ter curiosidade pelo mundo lá fora, pelo que se passa fora de nós. É, no fundo, um gesto anti-narcísico.

E é precisamente para esta disponibilidade para o Outro que esta obra nos convoca. Ela invoca o mar, os pássaros, a viagem – tão presentes na poética de ngela de Almeida, por exemplo também na obra Caligrafia dos pássaros. Os pássaros como símbolos da ascensão, do voo, da busca do longínquo, da liberdade, afinal. Podemos até dizer que é de uma poesia alada que aqui se trata. Uma poesia que se eleva acima do comum e que nos transporta para a primazia da linguagem, ou seja, recentra o texto naquilo que é mais importante: a palavra.

E esta é uma poesia que, curiosamente, também nos liga à terra e à natureza.

Plasmam-se aqui os quatros elementos primordiais: ar, terra, água e fogo. A dicotomia terra/água – ou terra/mar – é enriquecida com antítese entre o alto e o baixo, entre a terra e o ar, entre a terra e o céu, este último evocado de modo recorrente pelo movimento ascensional e libertador do voo do pássaro, ou do próprio poema que, feito gente (antropomorfizado), sobe ele mesmo ao cume da montanha, qual Abraão ou o Zaratustra de Nietzsche, em busca da revelação – veja-se o título do poema final, indicando precisamente a passagem do baixo para o alto: “um lampejo indica a subida do poema ao cume da montanha” (p. 83). Alto e baixo que são simbolicamente associados ao espiritual ou transcendental – o alto – e ao material e terreno – o baixo.

E chegamos ao quarto elemento: o fogo – que surge também de forma recorrente no texto, insinuando-se em versos de vários poemas, como nestes exemplos:

“emersão incandescente” (15)

“[uma] rota entre as labaredas ardendo” (16)

“poema incandescente” (24)

“as águas acudindo/ um farol em chamas” (30)

“encosta rubra” (35)

“sou o verso ardendo” (85)

O fogo, que pode ser destruição, é também purificação, paixão e força vital, permitindo o renascimento das cinzas. Como não fazer a relação com as línguas de fogo do Espírito Santo ou a sarça ardente? Há, de facto, uma relação evidente destes poemas com a revelação pela força da palavra que salva e purifica.

Muitas vezes assalta-nos a questão: para que serve a literatura? Qual a finalidade com que se escreve uma obra literária? Que repercussão tem a obra literária no mundo?

Este é aliás um questionamento comum aos artistas. Ainda na semana passada, António Pinho Vargas, o músico e compositor, dizia ao Expresso: “Para quem compomos? Quem é que ouve?” (edição n.º 2684, 5 de abril de 2024, p. 44).

É, portanto, comum questionar-se o posicionamento do autor face à sua obra e ao seu contexto histórico:

E quando falamos de literatura, vigoram duas conceções sobre as funções da obra literária (se é que ela tem de ter funções…):

uma conceção remete para a “arte pela arte”, ou seja, para a perspetiva segundo a qual o poeta/o autor faz arte para responder ao seu impulso criativo e estético, sem preocupações diretas de intervir no mundo que o rodeia;

outra perspetiva sobre a função da literatura considera o poeta/escritor como um sujeito interventivo na sociedade, construindo a sua obra com clara intenção de chamar a atenção sobre o contexto histórico em que está inserido, de nos fazer refletir sobre a vida, a sociedade, etc.

Aliás, Horácio – um dos autores citados em epígrafe (o outro é Camões) – na sua Arte Poética, desenvolve precisamente uma dupla vertente da literatura: ela deve deleitar e ensinar.

Ora, Ângela de Almeida, nesta obra, parece pender para a primeira perspetiva: a da arte pela arte. A janela de Matisse cria um mundo próprio, um mundo poético para lá do nosso mundo real, empírico. Um mundo feito de palavras, de arte da linguagem que se basta a si própria, que constrói uma mundividência feita de mar, de pássaros, de viagens, de memórias, de emoções…

No entanto, a autora, falando sobre a obra, assume que esta é o seu “olhar poético sobre a tragédia do Mediterrâneo, deslocando A janela de Matisse para os nossos dias” (in dedicatória). Há, assim, uma intenção clara de relacionar a obra com referentes reais, com os dramáticos naufrágios de refugiados, que se lançam ao mar Mediterrâneo sem condições de chegar a salvo a um porto seguro. Ou a um porto que simplesmente os queira acolher. Afinal, um retrato angustiado da (des)humanidade dos nossos tempos. Eles são anti-Ulisses, a eles nunca será permitido qualquer heroísmo, nem o regresso/ou a chegada a um lugar seguro e harmonioso. Ao Ulisses viajante sucedem estes novos andarilhos, a quem é vedada a chegada ao destino desejado:

nenhuma estação resgatará Ítaca

Ulisses não passará neste mar (p. 16)

O mar é aqui uma presença constante, na sua dúplice natureza: ele é o guardião da memória do passado, mas é também lugar de sofrimento, de tragédia, de naufrágio. Do passado fica o registo:

são esguios os barcos digo os mastros

das alamedas que te aguardam para

lá da memória de tanto ó tanto mar (p. 19)

Com esta memória contrasta o presente decetivo, “a ira do mar”, “o espasmo/ dos mastros” e o “tormento das águas” (p. 14) – a tempestade contra a qual lutam os viajantes desesperados no Mediterrâneo, o mar da tragédia:

sobra-nos a miséria humana no convés

da noite bebendo o sangue dum navio

destroçado

e a confissão duma outra biografia a nascer

no céu do poema casa líquida no imenso

clarão do nome

mar primordial (51)

Temos, portanto, um EU lírico solidário com o Outro, angustiado com o sofrimento alheio, procurando com a sua voz fazer ver a tragédia dos nossos tempos. Na mesma entrevista ao Expresso que citei há pouco, António Pinho Vargas mostra como, na música como na literatura e outras artes, há uma relação íntima entre o autor e o espírito do seu tempo: “Cada obra responde sempre às determinações de um corpo e às determinações de um mundo” (ibidem, Expresso).

“Corpo” e “mundo” têm uma relação inegável. E, perante a tragédia, a poesia é redentora. A poesia é abrigo, é “casa líquida”, como o líquido primordial da mãe que carrega o filho antes de ele nascer.

O colo protetor da mãe surge aliás num outro poema, que evoca a memória da figura materna: o poema “mãe na incerta espera de cada sílaba” (57), que se inicia como uma “carta de kW a sua mãe, CW, em Março de 2020” (59), data que nos remete imediatamente para o início da crise da pandemia de COVID-19.

Este é um EU despojado do consolo da mãe, em alguns dos belíssimos versos desta obra notável:

já não tenho as palavras

mãe

as que deixavas

no abismo

do travesseiro

quando a noite

e os meus olhos

já não avistam

os campos

que lavraste

com as preces

mastigadas

na sede

e aproveito

para dizer-te

mãe

não há mar no declínio

dos meus olhos

nem mesmo

o mar

que guardavas dentro

do limoeiro

e os pássaros

mãe

os pássaros

que despertavas

quando a manhã

ó mãe

não sei como dizer-te

os pássaros

foram sepultados

ontem

eu vi

mãe

sentei-me

no parapeito

da janela

e ali fiquei

sem o teu colo

bordado a alfazema

olhando a sorte

a sorte

já sem rosto

encostada

a um aperto (59-61)

E é curioso que é precisamente a mãe que resgata o “vocábulo perdido” (63), mantendo-se a metáfora da poesia-mãe.

Esta é assim uma poesia que resgata, que salva, uma poesia alada, como eu dizia no início, que nos chama a atenção para o mundo que nos rodeia, atenta aos sofrimentos do Outro, mas que, ao mesmo tempo, nos faz tirar os pés do chão, do mundo sórdido, que nos eleva e nos permite alcançar a beleza e a força do Verbo.

As afinidades eletivas da autora chamam-nos a atenção pelo centramento na palavra e pela sua plasticidade: da poética clássica – Horácio e Camões (nas epígrafes), Homero (Odisseia, Ulisses) – ao Romantismo (Rilke, p. 27) e ao Surrealismo (Paul Éluard, p. 55), com referências à linhagem (família) portuguesa – Ricardo Reis, o “Mestre”, p. 77 e segs. – concretizada na proximidade arquipelágica: Henrique Levy (39), João Pedro Porto (40) e Daniel Gonçalves (41), com os quais alguns poemas dialogam diretamente através das epígrafes.

ngela de Almeida, na sua poesia contida, serena, declarativa, despojada de tom retórico (veja-se a ausência de pontos de interrogação e de exclamação, mesmo quando estes seriam esperados) em que cada palavra tem um peso excecional, revela-nos uma inquietação ansiosa, angustiada e sequiosa – há aqui uma insaciabilidade do mundo, tão presente ao longo dos textos em imagens da “sede” (p. 74 e outras) e da “secura”.

Água e ar são elementos que se intersecionam no poema (“uma estação de sal”):

como se a matriz das águas nos secasse a dor

e nos devolvesse o verso ileso e íntegro a palavra

continuamente subindo o mastro do poema

até ao infinito céu de uma nova rota (24)

Surge a metáfora da escrita como navegação, a busca de uma “nova rota”, o verso puro e original (“ileso e íntegro”, inteiro), num movimento ascensional (“o mastro do poema”), rumo ao “infinito céu”, numa ligação evidente com o voo e os pássaros, tão presentes nesta e noutras obras da autora.

Chamo, por isso, a esta poesia uma poesia alada. “[S]eguimos alados” diz-nos o poema “somos a erma encosta”(p. 35). Sigamos a poesia de Ângela de Almeida, uma voz própria e original, que tem já o seu lugar firmado na literatura açoriana e na literatura portuguesa contemporânea.

Muito obrigada, Ângela, pelo convite para aqui estar a dialogar contigo e Muitos Parabéns por esta nova obra!”

Ana Cristina Correia Gil

Universidade dos Açores – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Centro de Humanidades – CHAM-Açores

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