
Lembranças de uma outra viagem pelas ilhas
Terminara o meu cruzeiro a bordo do Vasco da Gama. E, ao pisar de novo o solo de S. Miguel, uma alegria nova cantava dentro de mim…
Guilherme De Morais, Ilhas Do Infante
A primeira edição deste grande Ilhas Do Infante: Um Cruzeiro Nos Açores, primeiro escrito em forma de crónicas num jornal micaelense, Correio dos Açores, estava a ser preparado para publicação em 1933, quando o seu autor, Guilherme De Morais, trabalhava num último capítulo, mas faleceu precocemente nesse mesmo ano precisamente aos 33 anos de idade. Finalmente, esta 2ª edição traz três textos de introdução, um do escritor Urbano Bettencourt, que também não o tinha lido, mas tomou conhecimento do seu conteúdo através de um ensaio de J. H. Santos Barros publicado no suplemento “Contexto” do jornal Açores de 10 de Janeiro de 1980, texto esse que vem integralmente publicado nas páginas contextualizantes do livro. Urbano Bettencourt fala do lugar desta obra no contexto de As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, que também havia viajado por conta e iniciativa própria pelas ilhas no início da década de 20, e publicaria o seu agora clássico sobre o nosso arquipélago em 1927. Muito mais tarde, em 1956, apareceria O Corsário das Ilhas (anos depois de Mau Tempo no Canal) de Vitorino Nemésio. Os três volumes constituem uma espécie de trilogia sem igual sobre as nossas ilhas. Se Nemésio escreve pela primeira vez o termo “açorianidade” em 1932, atrevo-me a dizer que foi o continental Raul Brandão a despoletar toda a reflexão e uma nova visão do nosso povo, desde as paisagens singulares aos costumes das gentes e destes mais diferenciados lugares a meio do atlântico. Por sua vez, Ruy-Guilherme de Morais, filho do autor de Ilhas Do Infante, escreveu em 2018 outro texto agora incluído nesta segunda edição da editora Artes e Letras em que nos conta que o livro tinha sido publicado originalmente pela já mítica Livraria Editora Andrade (“que era, essencialmente, papelaria e oficina gráfica”, diz ele), em Angra do Heroísmo, começando a aparecer nas papelarias de São Miguel em 1938. Tenho de abrir aqui um parênteses. Ruy-Guilherme de Morais passou muitos serões em minha casa e na companhia de outros grandes amigos e colegas, como Urbano Bettencourt, Onésimo T. Almeida, Fernando Aires e Dias de Melo, entre outros, em ocasiões diferentes, mas nunca me/nos falou deste livro do seu pai, ou sequer da sua vida. Eventualmente eu escrevi e publicaria sobre a ficção de Ruy-Guilherme de Morais, As Terras Da Santa & Outros Causos, assim como lhe fiz uma longa entrevista publicada noutro jornal de Ponta Delgada. O autor das Ilhas Do Infante tinha sido formado em Direito na Universidade de Lisboa no início dos anos 20, e já tinha começado a escrever alguns versos, quase todos em forma de sonetos, que agora são também reproduzidos nas últimas páginas deste seu livro. É precisamente Ruy-Guilherme de Morais que nos volta a lembrar que quando a morte apanhou o seu pai ele preparava, uma vez mais, mais um capítulo final para Ilhas Do Infante. Mesmo assim, o leitor chega à última página com a sensação de um conjunto de textos inter-ligados e que completam a narrativa da viagem que ele fez em 1932 a bordo do velho navio de guerra Vasco da Gama, escalando todas as ilhas, menos a Terceira por razões nunca aqui explicadas, mas que não tinham nada a ver com a vontade do autor.

Ilhas Do Infante, sendo um livro de crónicas, torna-se uma das mais apaixonantes narrativas das nossas ilhas pelo olhar não de quem não vem propriamente de fora ou já com ideias firmes sobre a vida, literatura e as paisagens que vai encontrando, como talvez seria o caso de Nemésio, como me observava há tempos um outro grande escritor de cá, mas sim de um homem formado em Direito, e que aparentemente apenas cultivava esporadicamente a poesia que, como já referi, encerra esta obra. Guilherme De Morais inicia a sua viagem a 14 de Agosto de 1932, e data a última entrada a 26 do mesmo mês. Pelo meio vai descrevendo em termos laudatórios a vida dentro do navio que vinha percorrendo as ilhas em comemoração dos 500 anos do descobrimento, quando a data definitiva ainda tinha não sido actualizada por outros historiadores, sempre com palavras carinhosas e de grande admiração pela sua tripulação, desde o comandante até ao mais humilde marinheiro. A grandeza da sua escrita não está só na novidade que nos traz de cada ilha visitada, e que muitos de nós conhecemos. É o seu olhar ao mais ínfimo pormenor, quer de uma praia, rochedo, campo cultivado ou na sua pureza imemorial, a arquitectura e cores de casas que vê de fora, e sobretudo o modo gentil e até agradecido com que são todos recebidos. Pode ser um pescador ou trabalhador num porto ou na terra, ou então um raro taxista daqueles tempos em que escasseavam os automóveis em todas as ilhas. Desde linguagens sobre a sobrevivência de cada ilha, o autor topa nas nossas supostas diferenças um todo, esse todo a que a democracia viria a dar o nome de Região cujas idiossincrasias espartilhadas não desfazem a unidade deste arquipélago que sempre foi chamado Açores, mas que os antigos poderes centrais dividiam em distritos separados, mantendo o pouco contacto entre uns e outros, até porque os barcos mercantes eram poucos e os aviões nem existiam por cá. Não há qualquer condescendência nas suas observações e descrições do que vai vendo e ouvindo, simplesmente olha cada pedaço das nossas terras com o espanto inteligente de quem foi conhecer pela primeira vez o que ele sabia ser de riqueza humana e cultural, todos separados pelo mar imenso e bravo, mas que partilhavam uma história comum desde os primeiros dias do povoamento. Fala-nos nos terramotos mais violentos da época, como o da Praia da Vitória em 1926 e no esgadanhar da terra e do mar para a sua sobrevivência básica, quase sempre com um riso apreciador na cara e braços abertos aos forasteiros. A sua lealdade ao restante país fica simbolizada nestas páginas através desse modo alegre e grato com que recebem um grande mas velho barco de guerra com base na mãe-pátria. Divisão de terras por meios diferentes (pedras negras, naturalmente) ao florido das hortênsias nos cerrados do Faial, até à chegada ao Cais do Pico em São Roque, nada escapa a sua escuta e reflexão. Intitulada “A Ilha Da Alma Negra”, Guilherme De Morais quase entra em êxtase com a visão da grande montanha vulcânica do Pico e do modo como muda de cor e configuração com o baixar e subir das nuvens e sol, do mesmo modo como estranha e foge do cheiro dos restos das baleias recortadas, essas que eram parte fundamental na vida de boa parte dos habitantes, que trabalhavam a terra com o mesmo ardor com que a largavam para o mar em pequenos mas belos botes na caça aos maiores visitantes mamíferos nos nossos mares. Escreve o autor com a maior precisão das palavras e olho sempre vivo a tudo:
“Em seu redor, a mancha larga, cinzenta e escura dos ‘mistérios’, lava que o vulcão vomitou, percorrendo a ilha de lés a lés, entre pequenas intermitências de campos de milho, de quintas aromáticas, de maciços copados de faias baixas, de quintalejos nostálgicos, onde florescem, lado a lado, as figueiras sombras e os gerânios vermelhos junto aos muros toscos de pedra solta, de quartéis de vinha que dá um vinho capitoso e forte, de pinheiros esguios e castanheiros frondosos, alagando o sítio de frescura, de perfume, de paz”.
Prosa como esta repetida em passo após passo é pouco comum entre nós. Volto ao início deste meu texto: As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, O Corsário das Ilhas, de Vitorino Nemésio, e este Ilhas Do Infante, Guilherme de Morais, também completam um todo, cada um na sua originalidade e sagacidade verbal, tal como a natureza e gentes das próprias ilhas açorianas. Este é o que mais me tocou tanto em termos emotivos (que é outro dever da boa ou grande escrita), emoções, repito, como a visão absolutamente original na escrita deste género. Guilherme De Morais alude várias vezes a Raul Brandão, só que faz das Ilhas Do Infante uma gigantesca aguarela das mais variadas cores e formas. Alías, o próprio autor fala nesses termos, como que em cada paragem visse essa pintura sem par no mundo português. Provavelmente diria o mesmo da Madeira, mas essa outra ilha dar-lhe-ia um outro livro. Nada, afinal, está retirado que faça falta a esta soberba escrita, creio eu, a esta sua brilhante narrativa. Só que apetecia ler muito mais quando chegamos ao fim de um livro que não resistimos a virar cada página, ou outro livro semelhante de Guilherme De Morais.
___
Guilherme De Morais, Ilhas Do Infante, Artes e Letras, Ponta Delgada, 2019. Publicado no meu “BorderCrossigs” do Açoriano Oriental a 17 de Abril de 2020.
Filamentos (artes e letras na diáspora açoriana) tem enorme prazer em republicar estes textos de Vamberto Freitas, o crítico literário português que tem escrito consistentemente sobre a criatividade nos Açores e na diáspora ao longo dos últimos 40 anos. Vamberto Freitas sempre soube destacar novos autores açorianos, novas vozes, novas línguagens, assim como os da nossa diáspora. Desde sempre, Vamberto Fretias destacou escritores emergentes em ambas as margens do Atlântico.
