
Naquela noite de Natal, um denso nevoeiro abatera-se sobre a velha casa junto ao mar.
A casa, sombria e esboroada, era abrigada por uma velha figueira e rodeada por um tosco muro de pedra solta, por cujos buracos rompiam madressilvas. Musgos e líquenes alastravam pela cantaria e pelo telhado. E era por uma das janelas que se vislumbrava uma luz bruxuleando no interior rústico da casa…
…Eram as chamas que crepitavam na lareira da pequena sala, onde sobressaía um quase imponente relógio de parede, cujo tic-tac ecoava no silêncio daquela noite tão fria.
Sentado numa cadeira de baloiço, o velho Cipriano cabeceava de sono. A seus pés, um cão rafeiro fitava o fogo.
Junto à janela da sala, um pássaro debicava as grades de uma gaiola. Do estuque apodrecido, pendiam teias de aranha e as paredes escorriam humidade. No meio da sala havia uma mesa repleta de tangerinas e de pequenos pratos contendo trigo a grelar. Em cima do louceiro, uma fotografia amarelecida mostrava familiares emigrados, os quais, reunidos em frente de um vistoso “bungalow”, sorriam felicidades americanas,
Quando o relógio bateu a meia-noite, o velho Cipriano despertou, fitando, estremunhado, os ponteiros do Natal. Em seguida, levantou-se e dirigiu-se ao louceiro, de onde retirou um canjirão de vinho e uma tigela de barro, suspendendo o gesto ao reparar na foto dos seus…
Com os braços ocupados, voltou a sentar-se na cadeira de baloiço, enchendo a tigela de vinho. E, cismático, pôs-se a olhar aquela fotografia. O cão rosnou e enroscou-se-lhe nas pernas. O fogo da lareira reflectia agora cintilações de amargura no rosto do velho.
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Como é lenta esta noite!
Quanta amargura nas minhas recordações vagabundas! Quanta angústia nos meus sentimentos confundidos! E quanta infinita tristeza nesta casa tão vazia…
Ah, como sofro a minha memória. A memória dos que se sentaram àquela mesa noutras noites de Natal. A memória dos que partiram para as Américas de promessas e abundâncias. Todos abalaram para longe. E fiquei só eu. E esta velha casa. E este cão.
Ah, recordações da minha infância perdida! Ah, lembranças do meu Natal menino… Que saudosa melancolia! Era no tempo em que o Natal enchia esta casa de alegria transbordante! E era ainda no tempo em que o Natal parecia ter um sentido, porque acreditávamos que havia paz no coração dos homens.
Havia o fascínio desse Menino Jesus, louro, papudo, rosado como um morango, sorrindo nas palhas do seu rústico berço! E o esplendor do presépio, tão ingénuo e pitoresco! Mas agora… Cadê o aconchego familiar da ceia de Natal, tão farta e tão alegre? Cadê a doce expectativa dos presentes e dos momentos mágicos e risonhos? Cadê as laranjas maduras de outros natais? E onde estão agora os tapetes, as cortinas, as jarras, as begónias e a mobília desta casa que outrora foi festiva? Por onde param os que eu amei? Ah, quem me dera, nesta noite, um momento de ternura! O que eu daria, nesta hora, pelo conforto de uma palavra amiga!…
… Mas vivo o silêncio de ficar. E sofro a monotonia dos dias e o peso de haver Natal. É por isso que sonho a esperança a crepitar na lareira…
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O velho Cipriano continua a bebericar o vinho. Os seus olhos vêem o fogo da lareira a desfocar-se; a pouco e pouco, começam a adquirir nitidez os contornos de uma chaminé, alva de cal, vomitando fumo nos dias límpidos de haver sol.
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Nasci e cresci nesta casa, que outrora albergou numerosa família. De calção e ranho, brinquei naquele quintal em topadas de aventura. Tirei, vezes sem conta, água fresca daquela cisterna musguenta…
Meu pai era lavrador e minha mãe bordadeira. E o meu mundo era a casa, as canadas, as faias, os eucaliptos, os fetos, as jarrocas, as árvores de fruto, o cheiro da cidreira brava e do mentrasto, a família e os amigos. Mas era também o itinerário dos garajaus. E o percurso dos navios que eu, com o rosto colado à vidraça da janela da cozinha, via passar na linha do horizonte, a caminho da América…
O sonho não cabia então na ilha. Cedo aprendi as lições do arado. E conheci os segredos das sementeiras. E habituei-me aos milhos, aos pastos, à humidade, ao vento norte, aos vendavais, aos sismos e aos gritos das cagarras… Sofri as taponas dos meus irmãos mais velhos, as reprimendas de meu pai e os castigos na escola… Na catequese, Deus fora-me revelado na promessa do amor e da morte. E comi o caldo de couves da pobreza. E lavei os pés na selha de seis gerações. E li as primeiras letras à luz baça do candeeiro.
Quando o buço me cresceu, já eu deixara de fisgar melros pretos e de surripiar os figos de mel da vizinha Aldonça. Fiz-me homem. Vesti a ganga que vinha nas sacas perfumadas da América. E tomei-me de esquivos amores por Idalina – a meiga e obediente Idalina, com corpo de sedução e olhos pretos da cor da amora silvestre!
Ah, a Idalina! Desde o dia em que eu a vira a picar cebola, em vésperas de matança de porco, nunca mais tivera sossego. É que a minha vida não haveria de ser só ordenhar vacas, carregar bilhas de leite, esfregar os olhos de nevoeiro e ouvir carros de bois a chiar todo o santo dia…
O meu namoro com Idalina aconteceu. E esse amor levedou com balhos no terreiro, chamarritas ponteadas à viola, vindimas de Setembro e debulhas de Outubro. Ah, as falinhas mansas do bem-querer e as ternuras partilhadas a medo e à pressa, por causa do falatório…
Quando, por fim, fui chamado “às sortes”, visitei a cidade pela primeira vez. Compreendi, então, que o mundo era bem maior que o meu quintal. Depois fui para a tropa, embarcando no “Ribeirense” – com o ombro aguado das lágrimas de minha mãe e da Idalina.
Durante dois prolongados anos vivi, em terra estranha, a angústia da ausência. E quando regressei a casa foi para desposar a minha Idalina. E foi assim que, num dia de chuva morrinhenta, unimos as nossas vidas na mesma igreja que nos baptizara. E depois vieram os filhos; primeiro o Manuel e, depois, a Natália.
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O velho Cipriano levanta-se para ir colocar mais lenha na lareira. Depois volta a sentar-se, distraindo-se agora com o zumbido de uma mosca varejeira que volteava nos vidros da janela.
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O tempo passou, fugaz como uma lavandeira, e os meus filhos cresceram no sossego rural desta casa. Naquele tempo a vida era corsária e a ilha madrasta. Penava-se os olhos da cara a trabalhar a servidão. De nada servia mourejar de sol a sol. O cansaço era imenso e o ganho muito pouco. E era na tasca do Mija Vinagre que se afogava o desespero da aguardente.
Foi então que muitos começaram a emigrar para longínquas terras, em busca de uma vida mais digna. Os que ficavam, pouco a pouco acabavam por se render ao fascínio das histórias que se contavam sobre os que haviam partido. E o meu Manuel lá se deixou influenciar pelo sonho americano e abalou, bem contra a minha vontade… Foi para o vale de São Joaquim ordenhar vacas. Anos depois, e era a minha Natália que também partia para a Califórnia, a carta de chamada do irmão. A América nada me dizia. Embora eles me quisessem lá, eu continuei sempre na ilha a trabalhar a terra, nesta minha teimosia de ficar.
Depois, meu Deus, foi o golpe mais rude que o destino me pregou: após prolongada doença, a minha mulher morreu-me nos braços. Desde então eu nunca mais fui o mesmo. E passava tarde e tardes a remexer a memória (guardada naquela arca de acácia) e a fitar, cismático, as cintilações do mar.
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O velho Cipriano aconchega o casaco, levanta-se e dirige-se à janela, seguido do cão; de um dos bolsos retira um lenço amarrotado e desembacia um dos vidros. Lá fora, a noite uiva e o vento bate a chuva contra a janela.
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Como cansa a regularidade triste daquele pêndulo! Como dói o silêncio fechado de todas as portas! E como é infinitamente vazia esta casa e esta mesa… O que me vale é o “Jau”. Triste sina a minha. Nada mais me resta na vida do que um cão para amar…
Quem me dera sacudir da minha alma estas recordações. Para quê sonhar o Natal se tudo não passa de sonhos sonhados? (O Natal é uma mentira anual e é uma especulação comercial de falsa paz empacotada…). A realidade é bem outra: o meu povo abalou e ficou a incerteza de um futuro de nevoeiro. E agora? Quem vai trabalhar os nossos campos desertos? Quem vai pescar a promessa dos nossos mares? Quem vai bordar a ternura de gerar filhos? Talvez que só reste a esperança. A esperança de que, um dia, todos possamos caber na ilha. E que, de novo, haja roupa branca pendurada sobre os quintais. E figueiras de abundância. E casas a fumegar pão. E a alegria de rasgar o ventre nos dias amplos de luz suave.
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Confundido nestes pensamentos, o velho Cipriano afaga o pelo do “Jau”. E porque uma saudade infinita lhe amolece a alma, os seus olhos ficam vidrados de lágrimas. E ali se fica, junto à janela, fitando o lume a arder a memória, enquanto o tic-tac do relógio se mistura com o ruído do pássaro a debicar as grades da gaiola.
Victor Rui Dores, poeta
