Outras Vozes

Poesia das margens, dos continentes, das ilhas e do entre-lugares

Breve Introdução

Outras Vozes é um espaço de escuta.
Um limiar onde a poesia chega de outros lugares — outras geografias, outros silêncios, outras formas de nomear o mundo. São vozes moldadas pela distância e pela pertença, pelo exílio e pela intimidade, pelo trabalho discreto da memória e pela urgência de dizer. Aqui, a poesia não pede licença: surge, insiste e permanece.

Jules Auguste de Minvelle Morot nasceu em 1973 em Alc-le-Courtnay.
Poemas dispersos em jornais e revistas, nomeadamente interactivas, depois
agrupados e dados a lume sob o título “Le mardi-gras” (alguns dos quais saídos em
Portugal na “DiVersos – revista de poesia e tradução” (Direcção de José Carlos
Marques), na página interactiva paulista Cronópios/Musa Rara (de Edson Cruz) e no
TriploV (dirigido por Maria Estela Guedes).
Em prosa deu a lume “La chambre engloutie”, relatos e reflexões novelizadas de que
extractos sairam na revista cearense de Fortaleza “AGULHA”, pela mão de Floriano
Martins.
Licenciado em biologia marinha, exerceu o professorado. Depois da morte de seu
pai tomou conta do ramo (criação de vinhos) em que sua família fez tradição.
*
COMOÇÃO DE NATAL
Eu sou um espião mais que perfeito
os olhos as mãos a silhueta
tudo o que fui aprendendo tudo o que esqueci
tudo quanto Senhor vi depois da vossa morte
até as colheres de madeira e o prato grosseiro
ao jantar
ao começo da noite
mesmo as peúgas esburacadas do meu primo
mesmo a camisa esfarrapada do meu pai

os alegres e tristes olhos da minha mãe
e quanto compramos sem pagarmos
e sem um deus lhe pague
Tudo isso guardo no meu coração.
Nas noites nos dias da minha adolescência
quando a meditar me sentava
na pedra pintada de branco
no meio da horta da pequena Armandine
que me ofertava castanhas cozidas quando era tempo de Outono
e me limpava o rosto com um lenço de linho
olhando o meu suor de sangue.
Tudo isso é o meu tesouro
caro Senhor para si e para os vossos anjos
para os vossos assistentes na floresta do céu
para os notários de vosso augusto Pai
sem esquecer o garoto que vós fostes
e mesmo o mendigo que vos ajudou
a montar sobre o burrinho
que vos levou até à porta Susa
naquele dia da Páscoa.
Assim, caro Senhor, perdoai-me
as minhas faltas
as minhas repentinas alegrias
os meus silêncios estranhos
e todos os poemas que foram só pensamento.

URSO GANIMEDES
Ele levanta-se
coitado dele
e nós sentimos aquele arrepio inquietante
da sexta-feira ligeiramente escura
Cristãos comunistas desportistas consumidores de alcachofras
e mesmo outros de crâneo em silhueta contra a luz da lua
no meio do frio glacial do continente antárctico
se bem me entendo financistas agentes de câmbio
comerciantes ruidosos alunos de artes polícias
personagens que fazem navegar os barquinhos nos tanques dos seus
jardins da infância
Velhos capões
Notamos dizia eu ou melhor notam vocês os que
ainda por aí têm sonhos
a sua poderosa silhueta de comedor de bagas de zimbro
de fruta da época se a conseguia apanhar
de uma perna descarnada de montanhês

nos tempos da grande solidão feliz
O urso que outrora ia de Somner Valley a Livington pelo meio
das gramíneas das faias das nogueiras até às primeiras encostas
da grande montanha verde e negra


O meu urso
suave como um lilás
como um carvalho das Ardenas
sem saber ler sem saber escrever
O de muito perto da terceira subida nas Rochosas
ou mesmo da quinta ou da sétima
lá onde havia entre os abetos seculares um pequeno
lago sonolento
e se dizia que por ali emigrantes antigos tinham rebentado
no inverno coloquial de Wyoming evocado em Toulouse
Aquela senhora conferencista de boa perna dava-me volta ao miolo
Até me fazia sentir cãibras
de Santa Fé a Colorado Springs
o meu urso meu é claro ainda que de mil transeuntes contentinhos
Aquele que virando a cabeça erecto nos faz recordar o Quaternário
na sua imensa estrutura de velha fera indolente.
O Ganimedes
calmo empregado entre funcionários engravatados
pensa que pelas ruas faria dar gritinhos às raparigotas sem cuecas
a moda mais na moda de agora imaginem vocês
a sua companheira ursa perdida com a barriga ao léu


Ganimedes
No Zoo parisiense ele é um senhor cheio de categoria
mau-grado o seu silêncio habitual
chegam a atirar-lhe maçãs muitos lhe lançam
amendoins ou nozes de Agosto
e avelãs e até um maço de cigarros amarfanhado
O meu urso
Primo do meu primo Ribonard e dum grandalhão
mais tosco que a rocha Tarpeia
taberneiro merceeiro em La Jolle onde eu ia com o tio Lenôtre
comprar botas de caçador de perdizes
de cigarrinho mais que malcheiroso sempre ao canto da bocarra
sempre ensopado em branco e aguardente barata.
Ganimedes
sob o luar e os planetas libertos aguarda o momento de estoirar.

(Tradução de Nicolau Saião)

Missão

Amplificar vozes poéticas que existem para além do centro — vozes vindas das ilhas e das diásporas, de línguas e geografias periféricas, de experiências atravessadas pela migração, pela memória e pela diferença — trazendo-as ao encontro dos leitores contemporâneos através de uma curadoria atenta, da tradução e da reinterpretação literária.


Visão

Outras Vozes concebe a poesia como ponte e não como fronteira:
uma corrente viva onde as línguas migram, as tradições respiram de novo e as vozes menos ouvidas reclamam a sua plena ressonância. Este segmento procura cultivar um espaço literário plural, que valorize a escuta, celebre a diferença e afirme a poesia como gesto ético, estético e imaginativo entre culturas e gerações.

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