
De um outro desassossego interior
Refere ser complicada a sua vida… E, com essa afirmação, sentenciou-se. Limitando-se ao pensamento redutor e à quietude paralisante, não deixa que a aventura lhe toque…
Fernanda Mendes, Fios Tecidos Ao Vento
Fernanda Mendes, psiquiatra, política e governante aposentada, publicou o seu primeiro livro em 2014, intitulado Sexualidade Redonda e Circular, que tive o prazer de apresentar publicamente num ambiente algo diferente para mim, precisamente no Hospital do Divino Espírito Santo, aqui em Ponta Delgada. O desafio que a autora então me lançou foi complexo: estivemos perante um público que combinava leitores vindos de todos os quadrantes da vida, mas também médicos e sexólogos híper-especializados vindos de outras sofisticadas paragens, como Allen Gomes. Também ela é uma conhecida sexóloga, e a sua prosa de então foi decididamente um acto de coragem numa terra habituada a literatura sisuda e quase toda de meras insinuações sexuais nas suas páginas. Em Sexualidade Redonda e Circular a linguagem era bem outra, integrava o desejo e prazer, ou a dor de cama numa tradição conservadora como a nossa e dominada ainda pela hipocrisia social e religiosa, uma cultura do silêncio que acha estranho falar-se publicamente nestas questões, que também já dominam quase obsessivamente, como se sabe, até o discurso político noutros países. Só que a surpresa para mim foi encontrar um grupo de leitores e pensadores que aceitaram abertamente esse desafio médico-intelectual lançado nessa singular obra entre nós.
Agora, neste seu Fios Tecidos Ao Vento temos uma escrita epigramática, mas retirando a parte que diz respeito à sátira ou a outras significações mais negativas, mesmo que em certas entradas essas linguagens prevaleçam, sem nunca a autora perder a sua inclinação poética e de generosidade perante a condição humana em que vivemos todos, e ela olha muito atentamente, ouve sem perder pitada dos que lhe comunicam ou ficam no silêncio. Estamos aqui noutro livro bem diferente. Parece um diário, mas não é. São os seus pensamentos e memórias que lhe comunicam situações e gente em tempos diferentes. Fernanda Mendes vai anotando não só o que ouve das mais diferenciadas experiências de vida, como ouve a daqueles que ela conhece ou com quem convive, registando sempre ou a solidão ou o desespero de cada encontro. Trata-se de uma narrativa em curtos parágrafos ou breves frases do que ela pensa sobre a sua própria vivência em tempos que são os nossos. Diz-nos de si e dos outros, sem nunca ninguém identificar. Uma escritora psiquiatra é sempre “perigosa”, mas no melhor sentido da palavra. Sobressai não aquela que “julga” ou “sentencia”, mas a de quem entende o coração humano nos seus dilemas e medos. A capacidade de amar, ou não, a liberdade ou prisão interior dos sujeitos que ela encontra na vida, uma mulher tanto dona do seu destino como observadora desses “prisioneiros” e das suas circunstâncias. As palavras que escreve a qualquer dia ou da noite carregam em si quase sempre a empatia solidária e um entendimento da alienação numa sociedade sem regras nem as referências institucionais reguladoras de outrora. Em qualquer das circunstâncias, há o seu humanismo e a tentativa de entrar na alma dos seus interlocutores, ou o dos que ela experiencia em pensamento, quer seja solidária, mas também por vezes castigadora sem os juízos de valor que geralmente o acompanham, ou de maldade a eles inerente. Como em certos escritores, é o estado de espírito, seu e dos outros, que definem a nossa sociedade e o que essa sociedade nos impõe, como seres humanos, como amantes, como conhecidos, como ocasionais faladores de si e da sua sorte. É, uma vez mais, o desassossego de estarmos vivos na infelicidade e na má sorte do nosso destino. Nesse processo, a autora vai-se definindo como vai definindo os outros. Não se trata de pessimismo ou de alegria ante a vida: trata-se, antes, da nossa existência num labirinto que frequentemente dificulta qualquer saída.

“Estranho sol – escreve Fernanda Mendes — que não queima, estranha dor que não mata, estranho momento que não morre ao vento, estranhas vozes que nascem do meu espanto… Tudo requer estranheza”.
Permitam-me abrir aqui um parêntese. Cada livro ou cada frase abre espaços e feridas pessoais que nunca poderemos esquecer, e nunca nos deixa ignorar o que nos dizem pessoalmente. Toda a prosa que lemos ou é pessoal, se torna pessoal, ou de nada vale, nem sequer a dos textos arrogantes de alguns grandes escritores, quer sejam a poesia ou prosa. Leio um texto como que se fosse sobre a minha própria vida, mas nisso não há nada de estranho ou novo. A autora trouxe-me ao mais profundo ser a minha vida pessoal na companhia da minha grande companheira, a Adelaide. Foi uma escritora, académica e política, e muito mais do que isso, muito mais significante, o meu grande amor. Não, não vou ser lamechas aqui, queria só apontar a verdade directa destas palavras da Fernanda Mendes. Assisti durante quase 20 anos a uma doença na minha casa que mata a vida antes de matar o corpo. Não haverá nada de mais cruel. Ainda hoje essas “estranhas vozes” assombram-me nos meus dias e nas minhas noites. Nunca saber se me reconheces, ou estás comigo. Isto só para dizer do que nós, os vivos, fazemos todos os dias, sejam amigos ou só conhecidos. Estás comigo, ou estás comigo sem me ver ou reconhecer? Não me reconheces? Reconheço-te eu a ti, e isso basta porque o teu regresso não é possível. Um sorriso, um olhar terno ou mesmo indiferente, um beijo mole e olhos no infinito, deixava-me feliz. Os vivos não sabem disto. Sabem só os poucos seres humanos verdadeiramente conscientes da nossa sorte. Queria só dizer que se a psiquiatria ou uma escritora não encontra solução para os que vivem alienados e descontentes poderá ser uma tragédia, mas com a qual eu não ofereço a mínima simpatia ou empatia. Se não, em saúde e em vida normalizada te afundas, bom, temos outros e muito piores problemas a tratar ou a resolver. Sei que outros não vão gostar destas palavras. Paciência. Eu também recebi a mais forte lição da Adelaide, não ter medo ou aceitar a minha sorte futura. Uma depressão de outros ou a incapacidade de amar até se trata com comprimidos. Se isso não for possível é, para mim, um problema menor.

“Estranha forma de vida”, como no fado de Pedro Homem de Mello, cantado em som e voz arrepiantes pela Amália. Que Fernanda Mendes se tornou uma autora tão original entre nós não me surpreende. A autora tem vidas em várias geografias do nosso ser, desde uma pequena aldeia algures em Portugal continental ao Brasil, e depois a sua vivência aqui nos Açores. Só olhar simultaneamente o exterior e a nossa própria casa nos permitem certas perspectivas de vida a que não estávamos de todo habituados. Alguma escrita de gente que passou por aqui algum tempo e depois deixou um “testemunho” tem uma relevância muito relativa. Os que de “fora” vivem entre nós fazem parte da cultura e da vivência inteiramente açorianas. É deles e com eles que nos revemos. A autora de Sexualidade Redonda e Circular e de Fios Tecidos Ao Vento é, uma vez mais, do Continente, do Brasil e dos Açores. O seu e nosso círculo fica completo na sua escrita. Esqueçam os clichés do costume. De bruma e basalto eu, pelo menos, já estou farto. Nunca da nossa humanidade na melhor da literatura.
Fernanda Mendes, Fios Tecidos Ao Vento, Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2018.
Filamentos (artes e letras na diáspora açoriana) tem enorme prazer em republicar estes textos de Vamberto Freitas, o crítico literário português que tem escrito consistentemente sobre a criatividade nos Açores e na diáspora ao longo dos últimos 40 anos. Vamberto Freitas sempre soube destacar novos autores açorianos, novas vozes, novas línguagens, assim como os da nossa diáspora. Desde sempre, Vamberto Fretias destacou escritores emergentes em ambas as margens do Atlântico.

