
Nunca ouviram falar das orgias noturnas dos cagarros?
No verão, quando as noites se tornam impossíveis em sufoco, a irreverência dos seus concertos explode em sons roucos e bêbedos de mar e é como se lá de cima polvilhassem tudo com o pó branco da mistificação. É então que se pode dar conta do entorpecimento e da hipnose que se abate sobre todos.
Um estremecimento de coisa por definir contagia os animais, o mar, as pedras e empresta à lua a fantástica aparência de outra galáxia. È também quando as pessoas se sentem conjuradas a debruçar-se no parapeito das suas noites e abraçam distâncias de águas paradas e de barcos ancorados, por muito tempo ali permanecendo em velas de consumir e arder pela noite dentro em secretas esperanças, secretas viagens. A mistificação é tão completa, tão perfeita que o destino de ilha-redoma deixa de ser maldição, não pesa, nunca existiu, quem lhe conhece as agruras. Rasgar caminhos na noite e perder-se neles em estreita cumplicidade com o desvario dos cagarros, é tudo quanto conta.
Mais tarde, caía eu em mim e perguntava-me se o envolvimento amoroso daqueles pássaros justificaria tamanha algazarra, tamanho bulir com as pessoas e com as coisas.
Disto me lembro eu agora, bem como do meu espanto, quando, depois do Grande Sismo de 80, os cagarros deixaram de se ouvir, nem um único som rouco ou louco por uma única ilha ou ilhéu. Vítimas de mal desconhecido, praga ou vírus trazido pelo sismo? E no entanto, bem sabia que continuavam vivos nos ilhéus da sua predileção.
Então compreendi. O pasmo e o abalo tinham sido de tal ordem que lhes morrera a disposição festiva para o amor. Não tinham mais nenhum sentido os rituais de núpcias, os desvarios noturnos, as frenéticas orgias.
Se bem ouvi dizer, foi um jovem casal de cagarros quem ousou quebrar aquele luto triste e contranatura dos cagarros. Uma noite, sem se saber como nem porquê, a voz soltou-se-lhes lá das alturas em escândalo e profanação ao recolhimento cá de baixo. E toda a comunidade de cagarros sentiu então o primeiro arrepio do despertar e estremeceu em suas plumagens e em suas memórias, finalmente libertos daquela tristeza de mortos-vivos.
Aquele era o tempo do ressurgimento da vida para os cagarros como o será para os humanos, eles também em arrepio de alerta pela urgência da reconstrução de suas vidas e de suas casas.
Então, de um dia para o outro começaram a arribar à Terceira pessoas que arregaçavam mangas e se punham a ajudar no levantamento das ruínas daquele caos de juízo final, enchendo-se assim a Ilha de pedreiros, engenheiros, arquitetos, ajudantes de pedreiro e um sem número de pessoas que, não sendo nenhuma destas coisas, vinham tentar a sorte em terra alheia, pois que a desgraça de uns é, muitas vezes, a sorte de outros.
E não lhes faltaria trabalho. Se, antes do sismo, a Ilha Terceira apresentava a face da normalidade até às quatro da tarde do dia um de janeiro, a partir dessa hora era a face do irreconhecível. Quem lhe percorresse os olhos em espanto só poderia imaginar-lhe loucura, histeria, convulsão de Ilha em agonia, cansaço de existência que assim ousa antecipar uma nova com tal esventramento de ruínas, tal aflição de poeira e de gentes.
Por alguns meses, anos nalguns lugares, irá a Ilha Terceira apresentar o doloroso espasmo daquilo que não é esperado e acontece sob a forma de catástrofe, especialmente Angra, a nobre e heroica cidade de muitos séculos que abrirá a boca , incrédula, o passado glorioso reduzido a cinzas, exposto, sacrilegiado.
Que é da religiosidade desta gente, suas procissões de aparato, sua devoção ao Espírito Santo, seu total abandono à omnipotência divina, de que lhe serviu ela, onde se refugiou Deus, para onde terá ido se também O expulsaram de sua casa, se também as igrejas ruiram em espalhafato, não há ajuda possível, que Deus, que deuses lhes poderão valer?, assim se interrogando todos no mais fundo de si, nada mais lhes restando senão o terem-se a si próprios e não saberem o que fazer de suas vidas, talvez sair da Ilha, talvez.
Antes do Grande Sismo, depois do Grande Sismo. Dali em diante seria este o marco perdurável na vida dos teceirenses. Na verdade, uma vida nova começou depois do Grande Sismo. Primeiro passou a agir-se por instinto e para sobreviver, olhando-se para a torrente humana que vinha de fora como que debaixo de pesado sonambulismo de que aos poucos se iam libertando, que a necessidade obrigava e era preciso fazer pela vida.
A febre de reconstruir tornou-se uma praga, melhor dizendo, um castigo com que dali em diante tinha de se viver, o eco das máquinas e das marteladas sempre vivo por toda a Iha em competição com o sufoco da poeira e da sujidade, perguntando-se as pessoas saudosas do antigo sossego e da antiga ordem, se algum dia tudo voltaria a ser como dantes.
Assim se movia aquela colmeia humana incansável e imparável, cada qual empenhado na resolução de problemas insolúveis à primeira vista, tendo de bater a muita porta, aguentar-se em muita fila de espera, preencher muita papelada, obstinar-se em repetir muitos gestos, em fazer da fraqueza força Era uma questão de sobrevivência. Por isso se percebe que não tinham cabimento interrogações ociosas de qualquer tipo, em especial sobre o valer ou não a pena tanto esforço em solo tão ingrato. E no entanto as réplicas de sismo continuavam a manifestar-se, o susto sempre aceso, alimentando-se de insegurança e instabilidade o presente. As noites eram passadas em tendas improvisadas ou em garagens, sendo a partilha do medo mais suportável em ajuntamentos de gente
Quando for tempo disso, ir-se-á buscar comida já cozinhada às instalações do Inatel, as marmitas acomodando a quantidade suficiente para o almoço e para o jantar, e isso será de uma grande ajuda, ficando-se de movimentos mais livres para se dedicarem à luta de sobreviver.
Há quem diga que viver numa Ilha é viver no rasto do sobressalto. Por certo não dará grande segurança saber uma pessoa que o chão que lhe dá estabilidade assenta em grandes placas flutuantes, as mesmas que suportam os continentes, e que por baixo delas é só caprichar-se o magma tumultuoso e fervente e lá fura ele o mar nas suas profundidades, apetecendo-lhe ou não ficar pelas líquidas águas ou chegar à superfície delas, em grandes jatos de fumo e de lava para enorme susto de todo o ser vivente.
Mas poder-se-á dizer que o Grande Sismo fez estremecer não só os alicerces das casas, como também as vidas das pessoas. Antes do Grande sismo arreganhavam-se as nove ilhas dos Açores num grande bocejo, ninguém sentindo a falta de certas coisas ou da importância de certas coisas. Talvez o amor fosse a misteriosa exceção à regra., pois que apesar dos tabus e das hipocrisias ele ia brotando. Quanto ao resto , preenchia-se o ciclo da existência quase só com o comer e com o dormir, rezando-se também por conveniência e necessidade, a mesma conveniência que aceitava o arrastado conformismo político. Parecia que qualquer audácia em transpor a necessidade de certas barreiras, chocava de imediato com o círculo apertado de mar e de distância, aquela distância tantas vezes corporizada em nevoeiro cerrado, nervos à flor da pele, indolência dos sentidos, obscurantismo conformado.
O Grande sismo trouxe, sim, a novidade de muita coisa,a ousadia de muito caminho novo. Foi a sobrevivência dos novos tempos.
Por aqui, nestas paragens do Atlântico, não se pense que a vida pasmou ou se auto-suspendeu. Muito menos, que seja possível avistarem-se ainda pessoas em ofício de pasmaceira e debruce em janelas de ver o tempo passar. É que só se vive uma vez, coisa que o Grande sismo nos veio lembrar.
Maria Luísa Soares, escritora
