AS BALEIAS E OS HOMENS POR JOÃO BENDITO

Nas Páginas do Livro “O Canto dos Açores”

De Carlos Ávila de Borba

                                                              Ai quem pegasse nos homens

                                                      Bem calçados numa meia

                                                  Botados ao meio do mar

                                              Para engodo da baleia

                                                                                     (Cancioneiro popular da ilha Terceira)

  Costumo dizer que há dois episódios da vivência humana abordo desta nau planetária que sempre me fascinaram muito. Um deles é o conjunto de acontecimentos resultantes da descoberta do ouro na Califórnia. Felizmente, acabarei os meus dias neste calhau rolado a viver mesmo no centro geográfico onde tudo isso aconteceu, permitindo-me visitar e estudar as pequenas cidades – algumas abandonadas – e os centros interpretativos que se dedicam a preservar essas memórias.  

   O outro ponto, e de certo modo, até muito mais importante para mim, é o embrenhar-me em tudo o que diz respeito à história da baleação em geral e, numa visão mais “bairrista”, aos acontecimentos que se passaram nas ilhas açorianas e às viagens e aventuras dos baleeiros açorianos pelo mundo. Tenho, na minha pequena biblioteca, umas duas dezenas de livros dedicados às baleias, aos baleeiros e a tudo o que se relaciona com a interligação entre estes dois expoentes do reino animal. São romances, catálogos, crónicas de navegação, epopeias históricas, narrativas dramáticas de acidentes e naufrágios e, acima de tudo, muitos livros que documentam a História e as histórias da baleação nos Açores.

    A biografia açoriana é muito fértil nesse aspecto. Desde Dias de Melo, picoense que se debruçou devotadamente sobre a temática, até aos escritores mais contemporâneos, já se escreveram muitos livros, crónicas e artigos de jornal sobre o assunto. Agora chegou-me às mãos o que é talvez o mais recente trabalho dedicado às baleias e, de modo muito incidente, aos baleeiros picarotos. Carlos Ávila de Borba, terceirense de nascimento e homem com um invejável currículo na área do Desporto, incluindo a Metodologia de Treino e direção de várias academias desportivas, para além da publicação de uma série de livros policiais, enveredou desta vez pelo segundo romance, assinando o livro “O Canto dos Açores”, com chancela da Futurismo Edições. Quando comecei a leitura, eu pensava que tinha nas mãos apenas um simples romance, escrito por um açoriano e para açorianos, onde as paisagens e os mares atlânticos eram os cenários edílicos para uma história de amor em que as características dos personagens refletissem os humores e os desígnios da Alma açoriana. Notei o meu engano logo nas primeiras páginas…

    Entrei de proa na leitura, se me perdoam a analogia. Li descrições que me levaram aos meus tempos de menino, quando passava as férias de Verão em Santa Cruz da Graciosa e tive a oportunidade de conhecer e conviver com baleeiros, vigias, mestres de gasolinas e fui companheiro de brincadeiras dos filhos deles. Escrevi algumas crónicas de jornal com essas recordações. Contudo, este trabalho de Carlos Borba, para além de nos descrever, nos capítulos inicias, as atribulações de uma caçada ao cachalote com todos os pormenores que rodeavam tamanha aventura, é muito mais do que uma simples recolha ou compilação de textos onde os homens e os cetáceos se digladiam. Com uma escrita firme e bem desenvolvida, o autor embrenha-se na controvérsia que se abateu sobre os portos baleeiros dos Açores no começo da década de 80 do século passado.     Com o aderir de Portugal aos tratados internacionais que limitavam a caça ao cachalote e outras espécies, os baleeiros açorianos viram-se confrontados com algo para que não estavam preparados. Veio ao de cima o facto que muitos não queriam enfrentar: a caça da baleia nas nossas ilhas nunca evoluiu, manteve-se sempre numa forma artesanal; muitos dos homens que saíam para o mar em resposta ao estalar dos foguetes ou das buzinas dos vigias eram trabalhadores de outras profissões, mas o dinheiro, que recebiam ao fim do ano quando as contas eram apresentadas pelos armadores, era o sustento essencial para centenas de famílias. Algumas localidades prepararam-se melhor do que outras, conseguiram fazer uma transição suave e controlada. Mas, como a ação que Carlos Borba nos revela de forma superior, a Vila das Lages do Pico passou por situações desagradáveis. A teimosia de alguns e tacanhez tradicionalista de outros foram difíceis de ultrapassar. Mas, com perseverança e compromisso, um grupo de jovens, depois de conseguir ganhar a confiança de um punhado de veteranos baleeiros, deu a volta ao problema e introduziu alternativas que abriram novas e mais eficazes maneiras de fazer com que a passagem dos cetáceos pelas costas da ilha do Pico fosse aproveitada comercialmente, mas sem causar qualquer dano físico aos calmos monstros marinhos.

    Agradou-me muito a leitura deste livro. Na escrita de Carlos Borba notam-se exemplos que demonstram o lirismo, o estilo elevado que o autor usa nas suas deambulações pelo academismo desportivo, para além dos sentimentos e a racionalização apaixonada sobre as temáticas da proteção dos grandes seres marinhos, da salvaguarda do meio-ambiente e, sobretudo, com a contínua defesa da cultura açoriana. A construção do Museu dos Baleeiros, um dos temas-base deste livro, foi o colmatar de uma epopeia que durou duas centenas de anos, desde os remotos tempos das fugidas a salto nas barcas baleeiras americanas e que terminou no dia em que o último cachalote foi arpoado. Tenho a certeza de que o autor não se abalançou a criar este documento como forma de desculpa pela maneira como as baleias foram objeto de abate e exploração comercial por parte dos baleeiros açorianos; nesse aspecto, japoneses, dinamarqueses e outros povos têm maiores culpas no cartório.

    Há um pormenor que me tem espantado com a publicação deste livro: o empenho e o esforço com que o autor o tem publicitado e espalhado pelo mundo. Escrito originalmente em alemão, já que é em Munique que C. Borba vive e desenvolve a sua atividade profissional, o livro, na sua edição em português, foi apresentado na feira do Outono Vivo, na Praia da Vitória – a 3ª maior feira livreira do país -, para além de duas sessões em São Miguel, no Museu dos Baleeiros  nas Lages do Pico, em São Jorge (Velas) e no Peter Café Sport, na Horta, Faial. Anúncia-se para breve uma nova edição, desta vez em inglês, o que deverá permitir um maior acesso ao livro por parte das comunidades imigrantes nos Estados Unidos e Canada.

    Que o “Canto dos Açores” continue a navegar pelos mares da Literatura para levar ainda mais longe o conhecimento deste capítulo da história açoriana e contribua para um melhor entendimento da relação entre as baleias e os homens que as perseguiam e matavam, mas que agora as estudam e admiram na sua pujança de liberdade.

    De facto, uma história de amor ajuda a explicar muitas coisas.

Lincoln, Califórnia, Novembro 20, 2025

João Bendito

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