
Viagem ao Portugal profundo – Vale da Mula
No verão, o calor escancarado dissuade o mais valente dos seres humanos de sair de casa; no inverno, a mesma dissuasão surge por via do frio – é assim no Vale da Mula, aldeia cuja escola primária já não tem alunos há anos abastados, cuja tasca deixou de abrir a porta a quem tem a vontade de aquecer a alma com bagaço e cujas tradicionais lojas deixaram de existir por falta massa humana suficiente para garantir lucro. As gentes – todas em fim de caminhada por este vale de lágrimas (ali, quiçá, mais amargas) e fatalmente distanciadas de outras, finadas ou (e)migradas – vão durando entre o Centro de Dia (última e admirável novidade na aldeia) e a missa domingueira, esta num ritmo tão vagaroso como os passos de quem entra na igreja de traça românica, atarracada, penumbrenta, onde a austeridade dos santos como que anuncia a iminência do fim.
No meu tempo – diz uma velha que, resistente, por razão do hábito, às agruras do clima, tem a ousadia de sair de casa independentemente dos rigores das estações – havia muitos cachopos na escola, só meus foram sete, havia a loja, o barbeiro, isto no meu tempo tinha tudo, até alegria, agora é preciso ir fazer compras a Espanha, é verdade que fica aqui mesmo à beira, mas ver o que era nosso desaparecer, ai, menina, amachuca-nos o coração. Os mais novos, mas já passados dos sessenta, se vão à terra, por habituação que tomaram, logo se refugiam em Espanha – vai-se a pé, é um pulinho, ou era, que agora ninguém quer dar o pulinho, os de sessenta anos, cansados do trabalho na cidade dali tão remota, habituados aos carros, pois, obviamente, de carro vão até Espanha, Espanha é outra coisa. Ou até Vilar Formoso, que também é outra coisa. Também a Almeida, claro que igualmente outra coisa, mas já a tomar os contornos entristecidos do Vale da Mula e de quantas outras aldeias lhe ficam nas imediações – todas sem barbeiro, sem loja, sem cachopos na escola.
A minha mais recente viagem, em família – marido e netas –, foi ao Vale da Mula, a esse lugar que diz do que é o Portugal profundo, tão afastado da frescura da costa lusitana, tão distante do bulício das cidades, quase desabitado de gente, completamente desabitado daquilo que é vida a sério. Foi ali, no entanto, que o Norberto fixou os olhos verdes nos da Concha, azuis mais do que o céu, e casaram e tiveram oito filhos, de olhos verdes uns, azuis outros. Por isso, temos um neto de olhos azuis como os da bisavó que já morreu (os do avô são verdes). Talvez esse nosso neto faça connosco, um dia, quando for maiorzinho, a viagem que fizemos a esse lugar ignoto, omisso, muito quente, muito frio, agreste, cuja terra é tão oposta à minha em fertilidade. Férteis foram o Norberto e a Concha, mas já morreram ambos, e com eles a alma da casa – todas a têm, seja no Vale da Mula, seja na minha Achadinha, e todas se esvaziam dela assim que os seus habitantes deixam de viver, pois, parece-me, com a alma das gentes vai-se a alma das coisas que com elas tinham uma relação de intimidade, que lhes eram queridas, que com elas partilharam a vida.
Resolvemos levar as netas ao Vale da Mula. Saímos de Lisboa e tomámos a A1, seguimos pela A 23 e, depois, pela A 25. E, à medida que os quilómetros nos afastavam da costa, mais ressequida e mais pedregosa ia ficando a terra, mais escassas e menos verdejantes se iam tornando as árvores, um ribeiro que corresse não era suficiente para fazer vicejar a crosta de um Portugal profundo que se desvendava na sua solitude. Mais uns escassos quilómetros, em estrada sujeita ao descuido, e estávamos naquela aldeia aninhada à beira de Espanha, avistando os carreiros por onde, noutros tempos, os contrabandistas faziam a sua safra. Agora não há contrabandistas, até eles fazem apenas parte de uma espécie de mitologia desse Portugal esboroado, do qual restam memórias e lendas que os velhos não têm a quem contar. Se a bisa Concha fosse viva, havia de as contar às netas e ao neto do filho mais velho, o único que ainda traz a aldeia num cantinho muito especial do coração, mas a bisa Concha morreu – legou os olhos azuis ao nosso neto, nada mais.
Dentro da casa, cuja alma se extraviou, foi-se com o Norberto e a Concha, a única quentura vinha da lareira, onde, tal fazia o Norberto, o seu primogénito fez facilmente avivar o fogo, com os gestos que lhe ficaram doutros tempos. Nada mais foi preciso – as miúdas sentaram-se rentinho ao fogo, ali comeram, leram, desenharam, afiançando que nada era melhor do que aquela lareira. E eu pensei que talvez a alma da casa não se tivesse extraviado completamente, que talvez ainda pairasse, nostálgica, naquela cozinha, acalentando os corpos de duas meninas – felizes só porque o fogo ardia na lareira e era tão bom.
Paula de Susa Lima, escritora
Crónica publicada originalmente no jornal Ilha Maior-Pico.
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