Irma, de António Avelar por Leonor Simas-Almeida

As minhas saudações a todos os presentes e o meu agradecimento por estarem hoje aqui, disponíveis para ouvir algumas considerações minhas sobre Irma, um justamente galardoado livro de António Avelar na 1ª edição do Prémio Vitorino Nemésio. Ao António quero também dizer que aprecio o facto de se ter lembrado de mim para o papel de apresentadora desta sua obra. Registo a confiança que depositou na minha pessoa quando me dirigiu o convite, irrecusável, para vir à sua ilha natal falar de Irma. Digo “irrecusável” porque, embora nos últimos quatro anos – após a minha aposentação – eu me tenha escusado a quase toda a sorte de intervenções públicas, desta vez as razões para aceitar a tarefa de que António Avelar me incumbiu, sobrepuseram-se à minha própria vontade.

Ainda antes de começar a ler este romance, já sabia que me seria difícil declinar o convite. O autor é alguém por quem tenho especial carinho. Apesar de a nossa convivência ser muito escassa, cruzámo-nos em momentos significativos das nossas vidas, primeiro como colegas de licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa. Só nos reencontrámos recentemente, mas esse reencontro foi uma encantadora surpresa. É altura de acrescentar uma declaração de interesses, que não traduz bem o que em inglês se denomina disclaimer: o júri desconhecia o nome real dos autores, pois as obras foram submetidas sob pseudónimo. Só depois de a decisão final se ficus a saber nomes verdadeiros. Faço questão de registar este pormenor para deixar claro que se trata de perfeita coincidência o facto de o meu marido ter sido membro de um júri que premiou o livro de um antigo colega meu.

Ao fim de apenas umas trinta páginas de leitura de Irma, já não me restava dúvidas de que iria procurar fazer a justiça de que fosse capaz ao apurado trabalho do seu autor. Mesmo a dedicatória à mãe, Mercês, que, cito, “se estivesse conosco diria: – P’ra que foi agora isso, filho?”, desde logo me tocou. Lembrou-me muitas mães do nosso tempo, bem mais habituadas a dar do que a receber, que deixavam soçobrar a alegria por uma qualquer atenção dos filhos perante o cuidado em não causar incómodo, dispêndio material ou simplesmente de energia, à vista de qualquer inesperada oferta. A essa dedicatória, segue-se a primeira epígrafe do livro evocando uma “ilha imaculada”, “deixando-se entranhar” por “homens procurando o destino”. Nela a “vegetação cerrada”, os “rolos de lava”, as “grotas de fendas virgens”, os “fetos descomunais”, os “tufos de musgão” e até “o milhafre vigiando os recém-chegados” denunciam a sua pertença ao arquipélago açoriano. Logo confirmada na primeira página do primeiro capítulo, onde é identificada como “a ilha de Jesus Cristo”, nome atribuído no século XV àquela que viria a ser pouco mais tarde denominada “ilha Terceira”. Considero que o romance onde figura Irma como personagem principal se presta a ser lido como hino ao arquipélago; a Terceira, porém, ocupa nele um lugar de irrefutável centralidade. (Abro parêntesis por não resistor a apontar aqui mais um fator que tornou irrecusável o convite do António: a Terceira, ilha de nascimento da minha mãe, e de toda a minha família por via materna, faz desde sempre parte da minha própria identidade). O espaço onde ocorrerá a trama é, pois, o de diferentes pontos dessa ilha, e o tempo é o dos seus povoadores iniciais.

Não tenho conhecimento de outras narrativas ficcionais que se ocupem dessas eras remotas dos primeiros povoadores dos Açores. O que de mais próximo disso li chama-se A Capitoa, de João Paulo de Oliveira Costa que, mesmo assim, se refere a um período posterior. Nele projeta-se muito claramente o cuidado na reconstituição histórica mas, ao contrário do que sucede em Irma, um tal cuidado parece superar a possibilidade de criação de figuras verdadeiramente análogas de seres humanos, com vida interior, enervada e credível, capazes de inspirar emoções autênticas em quem lê a história das suas vidas.

Como disse já, a personagem que dá título ao livro de António Avelar é a sua protagonista central. Acrescento agora que o autor lhe confere uma existência que o/a leitor/a acompanha com vivo interesse, pelas suas vicissitudes e pelo papel que Irma representa na comunidade a que pertence. Pormenor digno de nota é o facto de nos fazermos testemunha do seu crescimento desde tenra idade. Não menos notável será a concomitância desse crescimento com o nascer e florescer da vila de Angra, até além do momento da sua elevação a c idade circa 1534, por ordem do rei D. Manuel I. Na verdade, o “tio” Lourenço (que no final do romance é identificado como pai) torna explícitas a coincidência do nascimento de Irma com o de Angra e a simultânea meninice de ambas: “ocorreu-me agora que Angra, há quinze primaveras, que são as que tu tens, estava também a nascer. Quando aqui viémos pela primeira vez, ainda eras uma menina, Angra não teria mais do que trinta fogos alcantilados neste outeiro, ao longo da ribeira. Uma menina, portanto”. Mais do que isso, porém, verifica-se na sintonia entre Irma e Angra um significado porventura de mais valia nesta narrativa, expresso na cumplicidade de ambas no culto do Espírito Santo – tópico nuclear do romance. Após uma bem sucedida celebração pentecostal na vila, à revelia da vontade e ação das autoridades eclesiásticas da época, cabe a Lourenço declarar: “ –  Ficai sabendo, Irmãos, que esta vila há-de receber a graça de El-Rei e será cidade. Nesse dia, nós que estamos aqui presentes, saberemos que, verdadeiramente, o primeiro dia de Angra enquanto cidade, foi este, e não qualquer outro. Para sempre!”

Este parece, pois, o momento azado para nos determos sobre um tema que atravessa praticamente todas as linhas deste romance, cujo autor se debruça sobre as origens nos Açores de um culto, (já à época em declínio no retângulo português), veementemente contrariado pela ortodoxia eclesial mas, apesar disso, sobrevivente até aos nossos dias.

Irma, dimuitivo de Irmengarda mas também, discutivelmente, de Irmandade ou Irmandades – as organizações de seguidadores da doutrina e das práticas pentecostais – é apresentada como fiel devota do Espírito Santo. Lembre-se que a filiação deste culto à Rainha Santa Isabel é até corporizada pela própria Irma, no momento em que, interrogada por um tal Sebastião Garcia, realiza uma nova versão do milagre das rosas. Escondendo no seio um pergaminho clandestino e intimada a mostrá-lo, cito, “com o gesto submisso do condenado, Irma abriu lentamente o regaço de onde caíram perante a estupefação de Lourenço e o desespero de Sebastião Garcia, membro do clero, dois lenços de alcova […] Nos quatro cantos de cada lenço, sobreposta a um raminho verde, havia uma rosa […] Flores, portanto, nada mais”. Irma não desfalece nunca na sua lealdade a um culto cujo “ sentido primordial leva [segundo o seu mentor Lourenço] à prática natural da harmonia e da comunhão”. São múltiplas as alusões à filosofia de vida que lhe subjaz, nomeadamente em termos de ideais de solidariedade, equidade e justiça social. Refere-se a sua origem no espiritualismo franciscano, bem como a sua alegada conexão posterior com a doutrina de Erasmo. Repetidamente se menciona os conflitos que trava, na defesa dos mais fracos, com o poder instituído das hierarquias religiosa e civil. Os que praticam este culto posicionam-se em geral contra a prepotência do clero e da nobreza conluiados na intimidação e expropriação dos verdadeiros arroteadores da ilha, aqueles que trabalharam a terra virgem e a tornaram fértil. Não é decerto por acaso que se ressalta a importância do Espírito Santo na Terceira quinhentista quando à ilha aportavam “ondas de visitantes, de novos residentes, e de acontecimentos ao ritmo do trânsito das embarcações de e para a Europa, Ásia e Brasil”. Numa atmosfera de rápidas e múltiplas mudanças sociais, digladiam-se forças antagónicas, umas de tendência progressista em prol da igualdade e da liberdade, próximas da ideologia matricial dos seguidores do Espírito Santo, outras repressivas e reacionárias propagadas por pregadores e outros defensores da ortodoxia romana e, a partir de certo ponto, violentamente impostas pelo Santo Ofício.

A propósito da visibilidade e resiliência do culto do Espírito Santo na Terceira e das suas alegadas raízes numa visão do mundo onde predomina a ideia de partilha com os elos mais fracos da sociedade, volto a não resistir a mais uma incursão pessoal nestes meus comentários sobre o livro de António Avelar. Estou a lembrar-me de como já em criança eu reparava na pouca atenção que a minha mãe dava às hierarquias sociais, por oposição ao respeito que o meu pai, embora muito discretamente, lhes concedia. Ela era, como atrás disse, uma terceirnse de gema que só com perto de trinta anos se mudou para Lisboa. Ele era produto de Trás-os-Montes, de um meio conservador. Creio ter sido por isso que me habituei a pensar a Terceira como lugar mais propenso a uma certa democracia avant-la-lettre. Daí eu me ter revisto na ilha reinventado pelo criador de Irma.

Muito mais haveria a dizer sobre o seu livro. Seria, por exemplo, interessante demonstrar como é exaltado o papel das mulheres – representadas em particular por Irma e a sua amiga Calita – na luta pela liberdade do culto religioso e pela defesa dos injustiçados. Outro aspeto a merecer atenção seria a delicadeza com que é tratado o tema da sexualidade não-binária, embora ele não assuma grande relevo na narrativa. De realçar também a preocupação do autor com questões de rigor histórico e o seu cuidado em esclarecer detalhes de toponímia. Nomes antigos e a sua evolução secular são referidos em notas de rodapé, o que contribui para criar verosimilhança e manter nos leitores a suspensão da descrença. Gostaria ainda de poder vos brindar com a leitura de algumas passagens de Irma, só para provar que tenho razão em achar que a beleza literária desta obra não é de modo algum despicienda.

Mas já me ouviram demasiado e confio que hão-de ler este livro logo que o adquiram. Resta-me, portanto, concluir, reiterando o quanto ganhei de prazer estético com a minha própria leitura, e o que aprendi na contemplação dos primórdios da modernidade no cenário idílico de uma ilha nos começos do seu contato com o poder humano de transformação, para o melhor e para o pior, do universo natural.

Parabéns ao autor, a quem deixo os votos de que continue aproveitando o seu talento para dar vida ao passado, ou ao presente, das nossas ilhas maravilhosas.

Leonor Simas-Almeida (texto lido na apresentação do livro)

Emerita, Distinguished Senior Lecturer, Brown University

Imagens da Câmara Municipal da Praia da Vitória

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