Coro das Ilhas Eternas: Vozes que o Mar Não Apagou

O PASSADO

A meu mano Joaquim Ben-Saude

Vaga sombra do negro passado

Vem-me em torno tristonha adejar ,

Da saudade o sentir chammejante

Vem-me as cordas da lyra soltar.

Em meus tempos tão bellos da infancia

Sustentou-me bem grata illuzão,

Alma meiga sorriu-me no berço

Eras tu, eras tu, meu irmão.

Junto a ti, e em teus braços queridos

Minha infancia sereno passei ,

Tua voz… teus protestos fraternos ,

Muita vez do meu berço escutei ;

E reinava entre nós a ventura

Ai ventura que eu nunca gosei !

E o prazer que enlevava tua alma

Muita vez do meu berço escutei ;

E escaldou minha fronte de joven

Basto pranto que rindo enxuguei ,

E um adeus que não pude intender-te

Ai tambem do meu berço escutei !

E roubou-te com braços de ferro

Essa sorte que rindo encarei ,

Crus soluços… saudosos suspiros,

Ai tambem do meu berço escutei !

……………………………

E fugiram-me os sonhos da infancia,

Jà na vida ninguem me-sorri ,

E minha alma vaguêa no mundo

Ai buscando, buscando-te a ti !

E essa sombra do negro passado

Nunca cessa de vir-me adejar ,

E a saudade tranzindo minha alma

Faz-me as fibras do peito estalar.

8 de Dezembro, 1852.

JOSÉ BEN-SAUDE.

Notas do Professor Manuel Menezes de Sequeira, a quem agradecemos a pesquisa e a colaboração.

Abrahão/Abraham Bensaude/Ben Saude (Rabat, Marrocos, 1790 — São Miguel, 30 de Dezembro de 1868) e Esther/Ester Amiel (Casablanca, Marrocos, 1801 — São Miguel, 3 de Maio de 1880), judeus sefarditas que se fixaram em São Miguel em 1819, tiveram quatro filhos:

— Raquel,

— Helena/Reyna,

— Joaquim Bensaude (1819 — Pará, Brasil, 8 de Fevereiro de 1856)

— José Bensaude (4 de Março de 1835, Ponta Delgada, São Miguel — 20 de Outubro de 1922, Ponta Delgada, São Miguel)

Dos dois irmãos, Joaquim era o mais velho e José era o mais novo, separando-os 16 anos. Por volta de de 1840 — ou talvez antes, quando José ainda estava no berço — Joaquim emigra para o Brasil, onde se fixa e, década e meia depois, vem a falecer. Em 10 de Janeiro de 1853, poucos anos antes da morte de Joaquim, a «Revista dos Açores», dirigida pelo notável José de Torres, publica «O Passado», o quarto e último — e francamente inspirado (quem sabe da poda que o diga) — de um conjunto de quatro poemas de José. Dedica-o ao irmão. Foi escrito em 5 de Dezembro de 1852, quando tinha apenas 17 anos. O primeiro poema do conjunto, «O Judeu», que se encontra no número de 31 de Março de 1852 da revista, vinha acompanhado da seguinte apresentação do novo poeta:

«O SR. BEN-SAUDE.

A POESIA todos a podem comprehender e cremos nos versos como na emanação mais recendente d’um coração que a soube sentir.

Muito folgamos d’ajuntar hoje ao nome de nossos collaboradores o de um mancebo, a quem as crensas herdades e poeticas d’uma nação, que os seculos desperçaram por sobre a terra, inspiram e alimentam o fervor com que a sua musa quasi infantil se-prepara para maiores voos.»

Note-se que José foi um industrial, administrador e lavrador, tendo fundado a pioneira Fábrica de Tabaco Micaelense, além de ter sido condiscípulo de Antero de Quental, seu amigo. Além disso, foi pai de Alfredo Bensaúde, fundador da minha alma mater, o Instituto Superior Técnico, de quem li interessado, há muitos anos, os escritos sobre o ensino superior, o que era, e o que deveria ser (creio que foram extractos das suas «Notas histórico-pedagógicas sobre o Instituto Superior Técnico», de 1922).

Entre a lava e o silêncio, as ilhas ergueram um coro. Cada voz — nascida do vento, da saudade ou da solidão — tornou-se parte de uma partitura que o Atlântico nunca esqueceu. Dois séculos de poesia açoriana habitam este vasto coro, onde o murmúrio do passado se mistura ao sopro do presente e onde a palavra se transforma em memória viva, em resistência contra o esquecimento.

Aqui reencontram-se poetas de todas as eras — os visionários do século XIX, os modernistas inquietos, os exilados da diáspora e os que hoje reinventam o verbo das ilhas. São vozes que dialogam ao longo do tempo, revelando que a poesia açoriana é menos uma escola literária e mais uma forma de respiração coletiva, um modo de existir no espaço líquido entre terra e sonho.

Coro das Ilhas Eternas é, pois, um ato de continuidade — uma celebração das vozes que o mar não apagou, das palavras que resistem à distância e do fogo interior que mantém acesa, nas páginas e nas almas, a chama do arquipélago.

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