
De há muito que sigo, com muito interesse e proveito, os avisados artigos de Antonieta Costa, PhD em Psicologia Social, especialidade em Comportamento Organizacional, com investigação focada na “organização horizontal das Irmandades do Espírito Santo”.
Porque acredito que há utopias que podem dar certo, venho aqui dar um modesto contributo sobre um tema que sempre me apaixonou: o Espírito Santo, cuja devoção o povo açoriano mantém bem viva, dentro e fora das ilhas, e cuja essência é o culto da dádiva e da partilha.
Mas de que falamos nós quando falamos de Espírito Santo? Em primeiríssimo lugar convirá não esquecer que o culto do Espírito Santo, de tão antigo, é anterior ao próprio cristianismo.
Festa do povo e para o povo, a festividade do Espírito Santo, introduzida em Portugal pela rainha Isabel e, nos Açores, pelos primeiros povoadores, decorre desde o Domingo de Pascoela até ao Domingo da Trindade, e ainda depois deste pelo Verão adiante.
Nestas ilhas o cumprimento de votos e promessas à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade começou por estar intimamente associado ao temor da força dos elementos: o isolamento físico, as tempestades, os sismos, as línguas de fogo dos vulcões e outras calamidades. (O fogo dos vulcões está simbólica e intimamente ligado ao Espírito Santo, até porque foi precisamente sob a forma de línguas de fogo que, no Cenáculo, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos). Não compreendendo os fenómenos naturais, era ao Espírito Santo que os ilhéus, em fervorosa prece, recorriam para acalmar tamanhos castigos.
Mantida pela fé, a festa do Espírito Santo, com uma ou outra variante, resume-se essencialmente ao cumprimento de uma promessa em ação de graças pela satisfação de um pedido em momentos aflitivos.
Então, em honra do Divino, são mortas reses, sendo que parte da carne era outrora distribuída em “esmolas” pelos pobres (hoje, os mais carenciados) e a outra, destinada às “sopas” (refeição propriamente dita) oferecida a familiares, amigos e convidados, após uma semana de terço (cantado ou rezado) à coroa do Espírito Santo, colocada em altar próprio em casa do mordomo (a pessoa que faz a promessa) ou no “império” (espécie de ermida onde se realizam parte das cerimónias das festas do Espírito Santo e nas quais, durante este período, se expõem as insígnias do culto: coroas, bandeiras e varas).
Manda a tradição que as “esmolas” sejam distribuídas no sábado e, no domingo de festa, realiza-se um cortejo, a chamada “coroação”, em direção à igreja, com as insígnias levadas pelo mordomo e seus familiares, ou por crianças ou adultos convidados.
Após o regresso do cortejo, é servido o jantar com sopas de carne (cozida ou assada), massa sovada e arroz-doce. Tudo é degustado à mesma mesa num espírito de partilha sui generis e num exemplo claro de fraternidade e igualdade.
À tarde, com a coroa em veneração do “império”, há o arraial com a filarmónica a tocar – a parte profana da festa. E tudo é feito com grande dignidade, em honra e louvor do Divino. Do Divino enquanto entidade sem personalização.

Em matéria de ritos e crenças do Espírito Santo, os Açores e as comunidades de origem açoriana, constituem os últimos redutos onde as doutrinas do italiano Joaquim de Fiore (1135-1202), abade beneditino, que anunciou a Idade do Espírito Santo (que sucede à Idade de Deus Pai e à Idade de Deus Filho) sobrevivem e mantêm o seu vigor.
A doutrina joaquimita, no que ao culto do Divino diz respeito e que hoje classificaríamos de utópica, pode ser resumida em três grandes linhas temáticas:
1. A criança, pelas suas qualidades inatas, nasceu para ser livre e poeta. E crescerá tão livremente que a sua imaginação, a sua espontaneidade e a sua capacidade de sonhar nunca se extinguirão e, por isso mesmo, ela, coroada e iluminada pelo Espírito Santo, será um dia capaz de dirigir o mundo.
2. A vida será gratuita para toda a gente. Porque não faz sentido nascer-se de graça e passar a vida a ganhá-la.
3. A economia desaparecerá do mundo e os crimes deixarão de existir, o que significa que deixará de haver cadeias. E será a criança, imperador do mundo, que abrirá as portas das prisões para libertar todos os presos.
O autor português que mais divulgou e defendeu estes ideias foi, sem dúvida, o professor Agostinho da Silva que nas suas obras, e com especial relevo para as suas “Conversas Vadias” (RTP 1), invocou o Sonho do Quinto Império – de que é símbolo a coroação ritual do Imperador do Espírito Santo – e fez a defesa do português do século XIII como imbuído deste espírito e portador destes ideais.
Dizia aquele pensador que “o homem não nasceu para trabalhar, nasceu para criar e para ser um poeta à solta”. Acrescentava que, nos apressados dias de hoje, precisamos do silêncio para ouvir “a voz da deusa” (segundo Camões), ou “a voz de Deus” (segundo o padre António Vieira). Até lá, há que saber escutar a vida para vivê-la respeitosamente.
O tempo passa e imutável continua a ser o culto popular (e teológico) do Espírito Santo, refúgio e refrigério de angústias e desgraças. E eu, enquanto escriba, vou continuar a acreditar no bafo criador do Divino.
Horta, 06/11/2025
Victor Rui Dores, escritor
