A ILHA DO CORVO

Nota Prévia: Mais um bom texto de Ernesto Rebello, ou melhor, Ernesto de Lacerda Lavallière Rebelo (Lisboa, 26 de Abril de 1842 — Horta, 15 de Novembro de 1890), escritor e jornalista açoriano. Trata-se do 5.º dos 17 capítulos do 1.º volume das suas «Notas Açorianas», e está publicado no volume VII do Archivo dos Açores, de 1885, páginas 98 a 102. Versa sobre o Corvo, sua história e suas gentes. Mais um texto que merecia maior conhecimento.

Pesquisa de Manuel Menzes de Sequeira, a quem agradecemos.

A ILHA DO CORVO

Para os navios que partindo de Boston ou de New-York, as duas grandes cidades maritimas da grande republica americana, se dirigem para a Europa, o primeiro, ponto do velho mundo que geralmente avistam, depois d’uns dez ou doze dias de viagem, impellidos pelas tepidas aguas do gulfe stream, é uma muito pequena ilha, cercada de tempestuoso e negro mar, de severo e alcantilado aspecto e não poucas vezes envolvida nos pesados nevoeiros que, durante a quadra invernosa, atravessam o nublado clima do archipelago açoriano.

É o Côrvo, como lhe chamam os modernos, diz-se que pela sua parecença com uma d’aquellas aves, a ilha do Marco, como lhe chamavam os antigos, por ser o sitio aonde vinham demarcar as suas derrotas, ou finalmente a ilha de Santo Antão, denominação esta devida ao nome do seu primeiro donatario, o portuguez Antão Vaz[1].

A descoberta d’esta ilha data do anno de 1452.

A antiga tradição de n’aquella terra, em sitio sobranceiro ao mar e encimando um grande rochedo, ter sido encontrada pelos primeiros povoadores uma estatua equestre apontando o rumo da America, donde proviera tambem á ilha a denominação da Ilha do Marco, carece de inteira confirmação, tanto mais que isto daria origem a importantes questões, com respeito aos verdadeiros descobridores do grande continente que lhe demora a oeste, apenas a poucos dias de navegação,

As averiguações, porem, que a semelhante respeito tem sido feitas, nada indicam de positivo, tornando-se muito provavel que, como diz o historiador açoriano o Snr. Antonio Lourenço da Silveira Macêdo[2], alguma caprichosa formação da natureza, isto é, um penedo que em distancia apresentava a forma d’um homem a cavallo, d’esse [desse] logar áquelle engano.

A Ilha do Corvo fica situada a 40.° de latitude norte e 34.° e 20m de longitude, medindo dez kylometros de comprimento por cinco de largura e mantendo exclusivamente, espaçadas relações com a ilha das Flôres, que se avista a grande distancia no horisonte.

Se de qualquer ponto da ilha vemos, constantemente, numerosas e enormes embarcações a crusar o oceano, ainda assim, por falta de arsenaes, de carvão ou de mantimentos, não é aquelle o ponto que esses navios procuram, quando com avarias ou necessidades, mas sim as ilhas do Fayal ou de São Miguel, embora relativamente assaz distantes, se a urgencia os não faz aportar á das Flores.

D’esta ilha é que dos mezes de Maio até fins d’agosto vão por vezes alguns barcos sem coberta e de vélas latinas, ou então ligeiras canôas da pesca da baleia, levar áquella terra algum raro passageiro, ou algum pequeno mercador que alli vae com fazendas, as quaes, ainda assim, pouca vendagem tem, por quanto os oito centos e tantos habitantes do Côrvo, toda a sua população, vestem-se de pannos de linho tecidos na ilha, ainda que em diminuta escala, ou de excellentes e abundosos lanificios tambem alli produzidos e com notavel mestria manufacturados.

Esta travessia geralmente, effectua-se com condições regulares e vento de feição, em tres ou quatro horas de viagem, indo-se desembarcar no Porto-Novo, no Porto das Casas, ou no da Areia, mesmo em frente da villa, de alegre aspecto, parte construida n’uma chã, parte em amphiteatro, no declive dos montes que a fecham de norte a oeste.

A villa, embora pequena tem optimas casas, bem mobiladas caiadas e todas cobertas de telha, devido isto aos filhos do Côrvo frequentarem muito as cidades dos Estados Unidos, d’onde trazem os usos e costumes.

As ruas é que são estreitissimas, em algumas das quaes nem pode passar um carro de bois e formando um verdadeiro labyrintho, de difficil saida para quem alli fôr pelas primeiras vezes.

Ao que parece tinha isto a sua rasão de ser, infestadas como eram antigamente, as ilhas, d’este archipelago por corsarios argelinos.

Na arte da guerra é talvez novo o systema de defeza, que passamos a narrar.

Uma vez, n’uma invasão de corsarios, das quaes as mais notaveis foram em 1632, por dez lanchões de turcos, de uma frota que por alli passou e em 1714 pela gente de quatro navios argelinos: estava toda a população da ilha atemorisada pelo desembarque d’aquelles malvados, que nada respeitavam e que não se limitavam a roubar os fructos da terra, mas chegando a sua ousadia a furtar as mais bonitas raparigas, que comsigo levavam, como infieis que eram, para lhes perder o corpo e a alma.

N’esse lamentavel dia, pois, quando o inimigo já em terra, enfiava pelo principal arruamento, para começar nas suas tropelias, alguns açorianos mais ousados, affrontando o terror da inerme população, foram aos pastos cercar uma manada de boios bravios e espantando-os e espicaçando-os até à Villa, conseguiram introduzil-os, já furiosos, pela estreita passagem apinhada de corsarios.

As portas estavam todas fechadas e trancadas, e das janellas, á mingoa de outros mais mortiferos projectis, cahia sobre os assaltantes um chuveiro enorme de pedras.

Os toiros esbaforidos e rijamente fustigados, para lhes accender a colera, embocaram com raiva pela rua abaixo, e vendo na sua frente aquella variegada e clamorosa turba, lançaram-se contra a mesma em vertiginosa carreira.

Era uma onda viva, mas [mais] temivel do que as soberbas ondas do mar, uma verdadeira razzia.

Dentro em poucos instantes homens e animaes confundiam-se em encarniçada lucta, de cujo resultado não reza bem claramente a chronica, mas como o já citado Snr. Macedo, na sua «Historia das Quatro Ilhas» que formam este districto nos diz que n’uma dessas refregas foram mortos cem inimigos, consentimos em acreditar, pela originalidade da defeza, que fosse n’esta occasião semelhante victoria.

A egreja de Nossa Senhora dos Milagres, orago da parochia, é o unico templo existente em toda a ilha, e que hoje tem vigario e cura, ao contrario do que n’outro tempo acontecia, em que só pela quaresma alli ia um sacerdote da ilha das Flores para as confissões e solemnidades proprias d’aquella epoca do anno.

Para quem vive, ainda mesmo actualmente no Corvo, a existencia alem de tranquilla, encontra variedade e grande abundancia de viveres, os quaes não são vendidos para consumo publico. mas simplesmente trocados uns por outros generos. A quem sobra trigo, por exemplo, troca-o por feijão e vice-versa.

Grandes são alli as creações de gado, especialmente suino, havendo tambem grande fartura de gallinhas, variada e excellente fructa, melancias e melões, peras e figos, agua nativa e afamado leite.

Não ha familia alguma da ilha do Corvo, por muito pobre que seja, que pelas festas não mate o seu porquinho e nas casas que tem cosinha maior vão dependurar, até mais não poder, as suas bandas de toucinho, que alli ficam ao fumo, assignaladas, e das quaes, diariamente, vão cortando a porção que precisam para gasto domestico.

A carne de vacca é, tambem, muitas vezes defumada e com especial sabor. Acresce ainda que a hortaliça é bôa, abundante, e que nas terras baixas a plantação da beterraba, para os animaes, assegura-lhes sempre farta alimentação.

O viver dos corvinos é o mais simples possivel.

Erguem-se ainda de madrugada, indo em seguida todos os homens, diariamente, ouvir missa. Vão depois para o trabalho e alli, das nove para as dez horas, almoçam leite mugido das vaccas, com pão de milho e centeio. Nada mais.

Perto da noite regressa o trabalhador ao seu domicilio aonde, então o espera, pela primeira vez, comida de panella, geralmente legumes, couves, nabos ou outros productos da terra.

Esta refeição serve-lhes de jantar e ceia[3].

Chá e café, de que nas outras ilhas do archipelago fazem tão largo uso as classes pobres é alli quasi desconhecido, e se alguem possue uma pequena porção d’aquelles generos é tão sómente para remedio de algum incommodo de saude, servindo-se, porem, em algumas cazas poções de cevada torrada.

Botica e medico tambem alli não ha, nem um unico estabelecimento de vendagem, encontrando-se, não obstante, em muitas moradias frascos do remedio americano «Pain killer», importado pelos rapazes da ilha que andam nas balieiras, ou que tem vindo dos Estados Unidos.

Quatro moinhos de vento e algumas atafonas trabalham na moagem dos cereaes para consumo e tambem, de presente, chegam da America, enviados pelos naturaes da ilha alli estabelecidos, barris de farinha, camisas de lã, peças de chita & [etc.].

O maior favor que poderiam fazer, á população do Côrvo era nun- ca lá lhe apparecer navio ou barco que levasse noticias de Portugal, que só conhecem pelas exigencias do fisco, para o que reservam o pouco dinheiro existente na ilha.

E, não obstante, os reditos [rendimentos] d’aquella terra uns 500 a 600$000 reis, aproximadamente, não dariam para a sua despesa com o vigario, cura, thezoureiro, escrivão de fazenda e respectivo escripturario, se as remissões de recrutas não viessem saldar o deficit.

O escrivão de fazenda e escripturario não residem na ilha, mas sim nas Flôres, em Santa Cruz, que é a cabeça de toda a comarca, indo porem, alli, amiudadas vêzes o segundo d’estes empregados.

Occorre, com relação à ilha do Côrvo, um caso singular; quasi todos os que se veem obrigados, por qualquer circumstancia a alli ir, vão de má vontade, como para um desterro, com a prespectiva de estar, ao menos seis mezes do anno, sem a minima noticia do exterior, nem saber o que se passa por esse mundo de Deus.

Demorem-se, porem, alli meia duzia de dias e a difficuldade será fazel-os sabir d’aquella pequena ilha.

A vida descuidosa que então se gosa, a abundancia que reina em tudo, a liberdade no trajar, a sincera e carinhosa hospitalidade dos seus habitantes, as magnificas prespectivas do logar, tudo nos faz esquecer que, alem d’aquelle insignificante ponto, perdido no seio d’um immenso oceano, hajam grandes, ricas e populosas cidades.

Aos navios que então vemos passar ao largo, dizemos, recostados na crista de algum penêdo; Ide-vos com Deus, que eu estou bem aqui!

E em seguida subimos ás cumieiras da formosissima caldeira do Corvo, que mede 5.500 metros de circumferencia e 250 metros de fundo, para contemplar aquelle magico panorama, cujo seio é um grande lago povoado de pequenas ilhotas e cujas encostas de frondente verdura são exuberantes de vida e encantos.

As raparigas da ilha, formosas e de cutis finissima, cantam, na primavera por entre as giestas e urzes: um sol esplendido incende ardentemente o lago: o ar do matto tem salutifera fragancia, milhões de flôres nos cercam por toda a parte e bemdizemos a Providencia que alli nos deixa gosar horas de tão tranquilla existencia.

[1] [Antão Vaz de Azevedo]

[2] [António Lourenço da Silveira Macedo (Horta, 11 de Setembro de 1818 – Horta, 18 de Dezembro de 1891), historiador e político do Faial, bem como reitor do liceu da Horta, e procurador à Junta Geral do Distrito da Horta.]

[3] [Note-se que então, e até há bem pouco tempo ainda em muitos locais, o almoço era a refeição da manhã (antes dele podia haver o dejejum), o jantar era a refeição de meio do dia, pelo meio poderia haver a merenda, e a ceia era a refeição do final da tarde ou início da noite.]

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