Cânticos do Mesmo Sal-Dois Poemas de José do Carmo Francisco

Cânticos do Mesmo Sal: Uma só língua, mil vozes: a poesia que atravessa oceanos e gerações.

Com António Fialho e Duarte Jorge, seminaristas

Nesta procissão da Padroeira

Eu levava o turíbulo do incenso

À frente do pálio do sacerdote

Com um resplendor de prata.

Muitas vezes eu fui a correr

Buscar brasas ao lume da casa

Onde nasci, casa de meus avós

Que hoje é apenas uma ruína.

Outras vezes era meu tio Álvaro

Dividido entre músico e sacristão

A correr, sempre a correr a tudo

Só na torre Zé Pombo não falhava.

À frente do pálio as bandeiras

Os pendões e os estandartes

Levados por homens e rapazes

Que ouviam a grave Filarmónica.

Um grupo de miúdos aparece

A dizer a um homem solene

Que um morteiro esfacelou

A mão de seu filho curioso.

Pois não lhe tivesse pegado

Que eu agora não posso largar

A espia do pendão ao vento

(Era Novembro, o Natal à porta)

José do Carmo Francisco, poeta

Lamentação do bispo de Bragança e Miranda José António da Silva Rebelo (1779-1846)

(a Carlos Marques Querido)

Nasci em 1779 em Santa Catarina
Terra de gente muito dada a alcunhas
Minha mãe foi chamada a Abadessa
Gostava de andar de capas pretas
E tinha um porte altivo ao caminhar

Vinha gente de longe para me ouvir
Preguei sermões desde o ano de 1804
Na festa da padroeira Santa Catarina
Na Real Casa Pia de Lisboa em 1828
Na igreja dos Jerónimos ao Domingo

Durante sete anos andei sempre a fugir
Das tropas do general Jorge de Avillez
Que entraram em Bragança em 1834
Expulsaram a guarnição miguelista
E aclamaram de seguida D. Maria II

Avó Isabel Maria e avô Manuel Fialho
Procuraram esconder-me na Cumeira
Um amigo leal pôs quatro almofadas
Nas ferraduras dos cavalos dessa noite
Sem chamar a atenção de quem dormia

Pena eu ter vivido um tempo demarcado
Pedro no Mindelo, Miguel no Alentejo
O ódio enchia os caminhos e as valetas
Eu mesmo me escondi nuns matagais
Onde uma criança me viu desfalecido

Em Almagreira onde morri anos depois
Meu nome ficou em pedra na capela-mór
Destino singular de quem nasceu no dia
Da primeira pedra da Basílica da Estrela
E na vida escreveu palavras como pedras

Por debaixo do meu retrato na sacristia
Um bisneto do sacristão do Padre Agnelo
Lava galhetas na água da torneira prateada
Anos depois assinará um poema obscuro
A ligar de novo o que a morte separou.

José do Carmo Francisco, poeta

A nossa missão é reunir e difundir a poesia escrita em língua portuguesa, nas suas múltiplas expressões regionais e estilísticas. Queremos criar um espaço onde as vozes de diferentes tempos e lugares se entrelacem, celebrando a riqueza cultural, histórica e afetiva que a língua portuguesa transporta. Teremos clássicos e contemporâneos. Uma mescla de vozes de hoje com vozes de ontem.

Sonhamos com uma comunidade literária sem fronteiras, em que a poesia em português — de Lisboa a Luanda, do Rio de Janeiro a Díli, de Ponta Delgada a Maputo, dos centros à diáspora — seja reconhecida como património comum e universal. Desejamos que cada poema seja uma janela aberta para a diversidade e, ao mesmo tempo, para a unidade que a língua proporciona

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