
Nota prévia de Manuel Manuel Menezes de Sequeira, a quem agradecemos este magnífico texto: Em 1943, Pedro da Silveira, pois estou seguro de ser dele, apesar de estar assinado «P. da S.», escreveu um pequeno artigo sobre um florentino pouco conhecido, Camilo Aureliano da Silva e Sousa. O artigo foi publicado no Almanaque dos Açores referente a 1944. Cá vai ele. As notas entre [] são minhas. As outras, entre (), são do texto original de Pedro da Silveira.
Camilo Aureliano da Silva e Sousa[1]
A Ilha das Flôres, embora pequena e de escassa população, tem sido berço de um número considerável de bons e sólidos intelectuais. Parece coisa inata no seu povo a literatura, como escreve Francisco Ferreira Drumond nos seus preciosos «Anais da Ilha Terceira», referindo-se a um filho ilustre desta Ilha, Padre José António Camões: «…dotado de um talento extraordinário para as letras e poesia, de que se conservam algumas: talento êste que sempre se tem admirado nos naturais destas ilhas Flôres e Corvo; ou seja devido ao clima, como alguns querem, ou à pouca distracção para os negócios e divertimentos, que oferecem os outros países…»(1).
Além daquele a que particularmente nos reportamos, podemos enumerar os seguintes escritores nascidos nesta Ilha : Frei Diogo das Chagas, antes do manuscrito inédito «Espelho cristalino em jardim de várias Flôres»; o famigerado e curiosíssimo espirito que foi o Padre Camões, autor das sátiras: «Testamento do Burro» e «Pecados Mortais»; Teófilo Ferreira, notável jornalista, orador e pedagogo que publicou vários discursos e a tese «Mania Puerperal»; António Maria de Freitas, professor, crítico e historiador que publicou «Critica Sintética à Visão dos Tempos de Teófilo Braga», «A mulher de Colombo», traduzido em inglês e francês, jornalista de que o grande escritor José Agostinho escreveu no «Homem em Portugal»: «o professor egregio, o jornalista primoroso…»(2); Carlos de Mesquita, professor de Filologia Germânica na Universidade de Coimbra, companheiro e amigo que foi de Manuel da Silva e Moniz Barreto poeta e crítico, autor do notável estudo «Romantismo Inglês», de que infelizmente só foi publicada a 1.ª parte: «Origens»; Roberto de Mesquita, o poeta imperecivel das «Almas cativas», etc. Isto atesta plenamente a afirmativa de Drumond. E poderiamos citar mais se quisessemos.
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Camilo Aureliano da Silva e Sousa nasceu na Vila de Santa Cruz da Ilha das Flôres no princípio do passado século[2] (3). Deve ser neto[3] do Doutor Juiz de Fóra José Leandro da Silva e Sousa, que nesta Ilha exerceu o seu cargo na última metade do século XVIII (4).
Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra em 1837[4] (5), sendo companheiro do depois Barão de Santa Cruz, António Vicente Peixoto de Mendonça e Costa, deputado pelo círculo da Horta em várias legislaturas e Governador Civil do Distrito de Ponta Delgada, tio do grande benemérito António Vicente Peixoto Pimentel.
Segundo Inocêncio, era Fidalgo da Casa Real por Alvará de 16 de Julho de 1834. Devia ser então estudante da Universidade e, embora tenhamos procurado sabê-lo, não descobrimos o motivo desta honraria. Seria combatente liberal? Ignoramo-lo completamente.
Logo a seguir à sua formatura foi nomeado escrivão da Mesa Grande da Alfândega do Porto, lugar que ocupou até 1839, data em que ascendeu a secretário do Tribunal de Comércio da mesma cidade. Mais tarde foi Juiz nas comarcas de Tondela e Oliveira-de-Azemeis e em Fevereiro de 1858 foi nomeado Procurador Régio na Relação do Pôrto. Em 1878 era Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Seguiu em política o partido da carta, ao qual prestou relevantes serviços, especialmente em 1837, por ocasião da Revolta dos Marechais. Muito dedicado a estudos de Agronomia, fez parte das comissões organizadoras das Exposições Horticolas que se efectivaram no Palácio de Cristal Portuense de 1876 a 1878. Na sua quinta do Pinheiro, nos arredores do Porto, tinha um pomar riquíssimo e uma colecção de 500 variedades de camélias, nacionais e estrangeiras.
Faleceu ai por 1883.
Colaborador assíduo do jornal literário «A Estrela do Norte» e do «Jornal de Horticultura Prática», escreveu as peças teatrais: «Dom Duarte de Menezes», «Dona Mécia» e «Feiticeira», representadas no Teatro de São João, do Porto, as quais não sabemos se foram editadas. Traduziu as novelas: «A jovem siberiana» de Xavier de Maistre e «Connemara, ou uma eleição na Irlanda» de M. Crone, publicadas respectivamente em 1842 e 1843. Em 1845 publicou, com uma erudita prefação crítica (que até foi atribuida a Gomes Monteiro), o manuscrito anónimo «Anti-Catástrofe, História do Reinado de Dom Afonso VI». Ai prometia dar à publicidade o inédito «Monstruosidades do Tempo e da Fortuna», de Frei Alexandre da Paixão, o que não sabemos se cumpriu. Publicou mais: «Código Civil Português», ordenado alfabèticamente, que em 1880 estava em 3.ª edição, correcta e acrescentada com um apêndice, contendo a legislação concernente ao mesmo Código, publicada até 1879; «Código de Processo Civil, ordenado alfabèticamente, e com a transcrição dos artigos do Código Civil respectivos às suas referências», s/d; «Galeria das ordens Militares, desde a mais remota antiguidade até nossos dias»—2 vols. com estampas coloridas, 1843; e «Cultivo das Árvores Frutiferas—pereiras, macieiras e pessegueiros», 1873 (6). Não conhecemos nenhum escrito de Camilo Aureliano que se refira, ao menos de passagem, à sua terra natal. Neto, e talvez filho, de continentais, pouco lhe importaria o pobre rochedo escalavrado, perdido no Atlântico, onde passou os primeiros anos da sua vida e aonde nunca mais voltou.
Os que tem escrito sôbre publicistas açoreanos, que saibamos, não se lhe referem, e no continente é tambem quási um esquecido.
Notas:
1) «Anais da Ilha Terceira», 3º vol, pág 254 e seguintes.
2) «O Homem em Portugal», por José Agostinho (Victor de Moigénie), 2.ª edição, pág. 85. António Maria de Freitas, falecido em 1923, estando de visita na sua terra natal, usava o pseudonimo de Nicolau Florentino, com que publicou a maioria dos seus escritos.
3) Maximiliano Lemos, in «Enciclopédia Portuguêsa Ilustrada», vol X, pág. 263, col. 1, dá-o como nascido em 1809. Em que se baseia não sabemos. Inocêncio F. da Silva, in «Dicionário Bibliográfico Português», vol. II, pág. 15, diz que nasceu em 1811. Como não verificamos nos livros de Registo de nascimentos da Matriz de Santa Cruz, nada podemos acrescentar. Não pudémos consultar o «Dicionário Popular», de Pinheiro Chagas, que é possível diga algo sobre a biografia e bibliografia de Silva e Sousa.
4) Vide «Arquivo dos Açôres», vol. XIII, pág. 339. Sendo o Dr. José Leandro da Silva e Sousa, Juiz de Fora em 1759, devia ter por esse tempo o mínimo de 25 a 30 anos. Em 1809 ou 1811 devia ter de 70 a 80 anos. Camilo Aureliano deve ser, portanto, seu neto e não filho.
5) Vide «Arquivo dos Açores», vol. XI, pág. 2, artigo: «Açoreanos na Universidade de Coimbra de 1802 até 1852». António Vicente Peixoto de Mendonça e Costa, companheiro de estudos de Camilo Aureliano, nasceu a 12 de Junho de 1808 e faleceu a 28 de Novembro de 1856. Foi um açoreano dos de mais destaque no seu tempo.
6) No exemplar do «Dicionário Bibliográfico Português» da Biblioteca Municipal de Angra-do-Heroísmo, há uma nota a lápis à margem do artigo sobre Camilo Aureliano (cremos que é do escritor Mendo Bem), que diz: «Publicou um Reportório ……… (ininteligivel) e atribue-se-lhe o poema heroi-cómico «Os Ratos da Alfândega em Pantanas». Lemos assim o titulo do poema, mas não sabemos se bem ou mal: não conhecemos nenhuma obra com tal titulo e por mais que procurassemos nada de esclarecedor apareceu. Naquela Biblioteca só existe a parte do Dicionário da autoria de Inocêncio (8 vol.). É possivel que nas partes seguintes, de Brito Aranha e Álvaro Neves, algo exista, mas não pudémos consultá-las.[5]
Flôres-29-VI-943.
P. da S.
[1] [Há uma interessante biografia de Camilo Aureliano da Silva e Sousa, escrita por Duarte Oliveira, Junior, por ocasião da sua morte, na revista O Occidente, ano 6, volume 6, número 168, de 21 de Agosto de 1883, pp. 186-187 (ver https://archive.org/details/n-196/N168/mode/2up). Essa biografia inclui um retrato de Silva e Sousa.]
[2] [XIX]
[3] [Na realidade, de acordo com a biografia de Duarte Oliveira citada, era filho. Seria neto de Camillo José da Silva.]
[4] [Na realidade, em 3 de Novembro de 1836, ainda segundo Duarte Oliveira.]
[5] [No livro Poemas herói-cómicos portugueses (verbêtes e apostilas), de Alberto Pimentel (1849-), publicado em 1922, surge a seguinte referência:
«RATOS (OS) da alfandega de Pantana, poema burlesco em 8 cantos, dedicado a todas as alfandegas do Universo, por J. M. P. — Porto, Typ. da Revista, 1849.
Aquelas três iniciais não correspondem à verdade do nome do autor, que foi Camilo Aureliano da Silva e Sousa; o qual eu ainda conheci procurador régio junto da Relação do Porto.
Era homem de inclinações literárias, traduziu alguns romances estrangeiros e foi o editor da Anti-Catastrophe.
Nos últimos anos da vida dedicava-se muito à floricultura e colaborou largamente no Jornal de horticultura pratica,
O assunto do poema são as irregularidades que, segundo corria, inquinavam a administração da alfândega do Porto, cujo director era o barão de S. Lourenço (de Asmes, concelho de Valongo).
A essas irregularidades se referia insistentemente a imprensa portuense designando-as pela expressão pitoresca de — ratos da Alfândega.
Por decreto de 5 de outubro de 1849 foi nomeada uma comissão de inquérito à alfândega do Porto e do seu relatório se vê que não menos de 5:000 pipas de vinho sairam pela barra do Douro sem que os respectivos direitos aduaneiros fossem pagos.
Segundo esta nota oficial, a voz do povo tinha razão, e o poeta também.
Explicando o título da sua obra diz o autor no prólogo: «0s Empregados da Alfândega de Pantana também são por consequência Ratos, Ratões, e Ratazanas: são as suas proezas, e a maneira por que ali fazem os despachos das mercadorias importadas, que formam o objecto do presente poema».
E no 1.° canto propõe o assunto dizendo:
Os Ratos e os Ratões assignalados
Da Alfandega famosa de Pantana ;
(Que é covil de larápios e quebrados
E terra mui chegada á Lusitana),
Seus feitos até hoje não cantados,
Sua por oiro insaciável gana,
Em verso levarei á luz do dia,
Deitando abaixo toda a livraria.
O poema tem graça, sobretudo para quem, como eu, pode penetrar o sentido de todas as alusões pessoais. Trata-se do Porto da minha infância, e de gente que eu ainda conheci — pelo menos de nome ou de vista.
Nos poemas herói-cómicos fazem muita falta as notas explicativas; mas neste compreende-se a ausência delas melhor que em nenhum outro.
Algumas das personagens que figuram nos Ratos entram também nas Commendas. (Vide esta palavra).
Ainda quero dizer, sobre o assunto do poema, que uma página da escandalosa crónica dos roubos na alfândega do Porto pode ser lida no periódico O Tripeiro n.° 24 de 20 de fevereiro de 1909, pág. 82, col. 1.ª.
Quanto ao autor do poema, li no catálogo da biblioteca de António Moreira Cabral (2.ª parte, Porto, 1909, pág. 490) a seguinte nota bibliográfica a respeito de Os ratos da alfandega: «Apenas há hoje dous homens que sabem do facto, de ser autor deste poema, o Dr. Camillo Aureliano da Silva e Souza, que morreu Desembargador do Porto; por terem sido da intimidade dele, e assistirem à revisão das provas».
Eu soube-o há já longos anos, porque mo disse o sr. D. António Aires, então bispo de Betesaida e depois arcebispo de Calcedónia.
De modo que se s. ex.ª não foi uma daquelas duas pessoas, eram três — e não duas como afirma categoricamente a nota.
Não me contou o sr. D. António que tivesse assistido à revisão das provas, mas assegurou-me de sciência certa que o autor tinha sido Camilo Aureliano, seu patrício e seu amigo íntimo.»]

