O desvio por José do Carmo Francisco

Nova série retratos 96

Há uma quadra popular no Cancioneiro do Ribatejo organizado por Alves Redol na qual uma jovem depara com um grupo de raparigas prontas a entrar para um baile de aldeia e diz: «Está lá a minha traidora» quando o sentido último da ideia é dizer «Está lá a minha rival» pois se trata de uma jovem que disputa as atenções do seu namorado. Em termos simples a palavra é aquela (traidora) mas o sentido é outro (rival) embora ao cabo e ao resto tudo se torne passível de entender. Num outro registo temos uma expressão muito usada no meu tempo de criança quando (à falta de outros instrumentos) as pessoas faziam humor com as palavras. Diziam assim os mais velhos perante os miúdos (eu nasci em 1951) mais ou menos isto: «Vocês que andam a estudar já sabem que tudo junto é separado e separado é tudo junto?» Perante a hesitação das crianças, logo os mais velhos diziam: «Não sejas palerma. Pega num papel e escreve!» e logo se percebia que na verdade «tudo junto» são duas palavras e «separado» é só uma. É um exemplo claro de discrepância entre palavra e sentido. Ou então como dizem os especialistas em Linguística «um desvio semântico». Mas isso é pedir muito a um jovem daquele tempo (anos sessenta) num país onde não se podia discutir nada ou quase nada e onde quem perguntava muito ia para a Ilha do Sumiço que era outra maneira de dizer o Tarrafal. Havia uma expressão terrível ao tempo que era «Os outros legítimos superiores» mas os superiores nada tinham de legítimos e a malta da rua até lhes chamava «cães grandes» e «papa- jantares». E dizia o velho monstro em S. Bento «Está tudo bem axim e não podia xer de outra forma»

José do Carmo Francisco, escritor

Leave a comment