
Retrato vívido e bem-humorado da ilha das Flores em pleno inverno, este capítulo das Notas Açorianas de Ernesto de Lacerda Lavallière Rebelo (Arquivo dos Açores, 1885) acompanha a ousada romaria de uma filarmónica de Santa Cruz rumo à Fajã Grande para a Noite de Reis, atravessando serras e vales e enfrentando uma tempestade memorável. Entre a paisagem abissal, a fúria da Ribeira Grande e a hospitalidade da Fajãzinha, emergem cenas saborosas — da logística dos instrumentos ao bombo destemido — e episódios de cultura local, como a evocação do Padre Camões. O texto combina observação etnográfica, crónica de viagem e comicidade, oferecendo ao leitor a experiência sensorial de “dormir” um temporal florentino sem sair da página.
Nota do investigador Prof. Manuel Menezes de Sequeira, a quem Filamentos agradece este saboroso texto: A digitalização a que tive acesso não tem boa qualidade, pelo que muitas das vírgulas parecem pontos. É impossível, por isso, determinar onde estariam os pontos e vírgulas. Onde manifestamente as vírgulas não faziam sentido no texto, mas havia uma minúscula no início da frase seguinte, converti essa minúscula em maiúscula, para não ter de «inventar» pontos e vírgulas. Mas a opção é discutível.]
Na gema do inverno, viajar pelo interior da ilha das Flôres, não é empreza das mais faceis, nem, diga-se a verdade, muito agradavel. A naturesa essencialmente accidentada d’aquella terra, os seus continuados sêrros e valles, mas sêrros alcantilados e terriveis, bem como profundos e agrestes valles, a não ser na estação estiva, quando os arvorêdos exuberantes de folhas encobrem a nudez negra das pedras, ou quando as flôres silvestres recreiam agradavelmente a vista, torna qualquer excursão pouco convidativa e bastante descaridosa.
Que trabalhos, porem, conseguirão jamais acobardar o animo irrequieto em corações de vinte a vinte e cinco primaveras?
Uma vez, parece-me que foi no ano de 1878, os musicos da unica philarmonica da Villa de Santa Cruz, limparam o metal dos instrumentos, examinaram se os pistões do cornetim e figle [oficleide] trabalhavam regularmente, se as chaves da flauta não ficavam no ar quando acabavam de ferir qualquer sustenido, se as pelles da caixa forte e do bombo ainda podiam aguentar rija pancadaria e dando uma revista a meia duzia de marchas e algumas valsas do seu reportorio, bem como tendo ensaiado as populares cantilenas da fatidica noite dos Reis, ajustaram que haviam ir passar aquella festa à freguezia da Fajã-Grande distante d’alli umas 3½ legoas.
Eram doze figuras ao todo.
Nas pequenas localidades a simples partida de uma philarmonica para qualquer sitio è ja de si um acontecimento, à porta da casa da musica estava uma porção de cavalgaduras à espera dos viajantes, a garotagem. atrahida alli pela prespectiva de alguns minutos de pandiga, fazia o costumado arruido, o tocador do cornetim já, de uma das janellas dera, por trez vezes, o signal de se ajuntarem os tocadores, muitas das familias da villa estavam mais ou menos representadas no momento da partida, os occiosos do logar dispersos em grupos commentavam quanto viam, e até pelas ruas condocentes à sahida da Villa, donzellas casamenteiras esperavam palpitantes a passagem d’aquella tropa.
E, abra se aqui um paragrapho a respeito das florentinas, são formosas, e vivas como azougue, honrando a patria pela sua reconhecida aptidão em quaesquer misteres a que se dediquem sejam industrias ou letras.
Depois das despedidas do estylo, em que os velhos desdenhando das uvas que já não podiam comer, gabavam muito o seu tempo, e em que os novos que por qualquer circumstancia não podiam acompanhar os seus patricios, os olhavam invejosos, em que as meninas choravam nas adufas e em que os cães ladravam a todo aquelle burborinho, a cavalgada, tendo por acompanhamento a gaiatagem dando vivas até a sabida da villa, atravessou as ruas da mesma com o denodo e prosapia dos soldados de Napoleão 1.º, quando iam crusando os Alpes.
O leitor incauto talvez julgue que estamos dando empollada magnitude a um facto de somenos valia. Pois meu bom amigo, proponha-se na ilha das Flôres a transitar por montes e valles diga-nos depois o que é semelhante empresa.
Não desconhecemos que jornadear numa pequena ilha é muito differente do que percorrer um continente, mas se as probabilidades na primeira são de quebrar as costas, em quanto no segundo de viajar em terrenos planos como o soalho de uma caza, por effeito de magnificas obras de arte, tres e meia legoas de caminho a troncos e barroncos valem por trezentas legoas de estrada de ferro, em luxuosos wagons e com todas as commodidades que se podem imaginar.
É a mesma coisa que se acreditassemos que só vive muito, quem vive muitos annos, quando n’um lustre de actividade, pode-se esperimentar mais dos baldões da existencia, do que em oitenta annos de apathica estagnação.
Tudo no mundo é relativo.
A cavalgada, pois, como iamos dizendo, à força de muita paulada nas bestas, passou pela villa como uma avalanche que rolasse de alterosa serra, entre as risadas dos alegres excursionistas, os adeuses das namoradas, a vozeria dos gaiatos, os latidos dos cães, e os sorrisos dos velhos relembrando-se do seu tempo e das suas turbulentas africanadas.
Para os sitios que a phylarmonica seguia, havia em parte estrada, sendo mais para temer qualquer accidente nocturno, do que o transito á luz do dia, mas os rapazes, com o descuido proprio d’aquellas edades, haviam sahido ja tarde da Villa e só com grande diligencia poderiam chegar ao seu destino antes de noite fechada.
O começo da digressão foi delicioso, os mattos da ilha das Flôres são formosissimos, o tempo estava sereno, verdejantes collinas e algumas planicies, de prasenteiro aspecto, apesar da estação invernosa, tornavam muito apraziveis aquelles sitios, assim como sete caldeiras, mais ou menos profundas, dispersas aqui e alem no despovoado, extasiavam a vista com o seu encantador aspecto.
Ainda assim, quando n’aquella breve tarde de Janeiro, o sol começou a declinar no horisonte, algumas nocturnas nuvens, negras e ameaçadoras surgiram por detraz das mais altas serras e a espaços umas refregas de vento agudo e aspero vinham, subitamente, fazer murmurar os arbustos do matto, ou tirar gemidos dos arvoredos.
A refrega. porem, passava breve e o tempo serenava de novo.
No clima, essencialmente variavel, dos Açores, e maxime nas ilhas occidentaes do archipelago, isto não se tornava um bom indicio, as taes nuvens negras continuavam a invadir o firmamento, o vento ia-se, tambem, levantando, fustigando a caravana, as gollas dos casacos eram erguidas e os chapeus enterrados até ás orellas, ao tempo que alguns grossos pingos d’agua vinham manchar a nitidez dos figles e trombones, deitados a tiracollo dos seus respectivos tocadores.
Os burros em que seguia a comitiva cruzavam as orelhas e andavam mais vagarosos, apesar de muito espicaçados. Advinhavam o quer que fosse de anormal, estavam com a nostralgia das suas mangedouras, ao abrigo das intemperies.
O momento fatal não se fez aguardar muito, havia já bem pouca claridade no matto que mais se ensombrava de instante para instante e uma chuva delgada e penetrante, começou a alagar tudo, tornando o terreno muito escorregadio nas descidas., em que as bestas tropeçavam a cada passo, acrescendo que por vezes os algares, ao lado do caminho eram profundos e medonhos, como as boccas escancaradas. de alguns monstros gigantes.
A noite desceu rapida e tenebrosa, sem uma estrella no ceu, então negro como azeviche.
Apezar da imprudencia da juventude, um ou outro dos excursionistas começou a persuadir-se que não era uma questão muito simples andar a cavallo por aquelles sitios, sem ver um palmo adiante da cara, nem saber ao certo o rumo que se levava, por effeito das trevas.
Seguiam, não obstante, por enquanto calados, deixando as cavalgaduras escolher o melhor caminho, embrulhando-se, como podiam nos casacos e virando para baixo as abas dos chapeus de feltro, para a agua não lhes entrar tão facilmente no pescoço.
O matto, é sabido, quando agitado por chuvas e ventanias, tem muita semelhança com o oceano, nos arbustos rasteiros de que por vezes estão povoados grandes tratos de terreno ha ondulações congeneres com irriquietas vagas, os ramos despidos das arvores assobiam como os cabos da mastreação de qualquer navio e mil sons mysteriosos e confuzos, partidos não se sabe d’onde, como o rumorejar d’um grande ajuntamento de povo, vem dar ainda uma nota mais triste àquelle caliginoso espectaculo.
Era o que, então, acontecia.
— Isto vae-se tornando serio — gritou d‘entre as sombras um tocador de contrabaixo — o instrumento já me apanhou uma amolgadella e tem bebido agoa que nem um funil, é capaz de não querer tocar.
— Cala-te, toleirão, — respondeu o do rufo — eu cá botei o meu casaco por cima da pelle d’esta caixa, embora me alague todo, nas occasiões é que os musicos se conhecem. Empresta-me d’ahi um cigarro, eu tenho isca.
O do bombo, um alentado mocetão, a que o vento havia arrebatado o chapeu por aquelles campos fora, era o mais alegre do rancho, a agua escorria-lhe em jorros pela cabeça e faces, custava-lhe muito a aguentar-se no jumento em que ia escarranchado, levando em frente de si o atroador e enorme bombo, mas ainda assim soltando uma forte risada, exclamou:
— Imaginem vocês as nossas meninas da Villa se nos vissem n’este bello estado, que lagrimas não chorariam… Filhas da minha alma !
Um luzido relampago, sulcando o espaço, descortinou providencialmente o arriscado sitio em que então se achavam, era à beira de um precipicio de enorme altura, medonho e aprumado.
— Ó amigos, cautella. — gritou um mais timorato, — isto aqui e fundo que nem o diabo…
— Não vês que temos illuminação celeste, toque a musica, que tudo vae bem. Anda p’ra diante, vardasca!… e o do bombo obrigava o jumento que montava a atropelar o outro animal que se lhe seguia no estreito trilho.
— A gente rola por ahi abaixo. José!… — accudio seu visinho — que asneira é essa, deitas-me agora o bombo para cima das costas… mau !
Rapazes !… eis o cuidado que lhes dava ter a morte a meia duzia de passos, por quanto d’um lado do trilho erguia-se alterosa muralha de informes rochedos e do outro abria-se profundissimo abysmo.
O tempo crescia sempre, a ventania nem os deixava seguir e veio um aguaceiro tão grosso e forte, que no logar em que, passado o precipicio, o trilho alargava mais, fizeram alto, para decidir, n’uma especie de conselho de guerra, o melhor partido a tomar.
— Isto o verdadeiro — tornou ainda aquelle mais cautelloso mancebo a que já nos referimos — é voltar para Santa Cruz, não ha desaire, a gente não tem culpa do tempo ter-se levantado d’esta maneira…
— Para a villa, isso tinha que rir !… era até uma deshonra para esta phylarmonica. Não Sr., para diante é o caminho, dê lá por onde der…
— Appoiado! — bramiram numerosas vozes.
— Ó filhos, mas com este tempo…
— Ora adeus, chuva nunca quebrou ossos, o peior foi eu ter perdido o meu chapeusinho, era novo e ficava-me bem, palavra de honra… Anda p’ra diante, vardasca!
— Pois siga quem quizer, eu cá volto para traz.
— Ó aquelle, olha que isto hoje ha aqui facadas. Toca o burro, anda, não te faças tolo !…
— Não dou mais um passo, sem que vocês me dêem bastante genebra, ora eu que podia estar socegado em caza…
— Pega, ladrão, bebe à tua vontade e não estejas a desanimar os outros.
O regente da musica entreveio, então, na contenda com a sua authorisada voz. Elle, como pessoa mais edosa, mais considerada, desejava velar o pondunor inconcusso da sua phylarmonica, mas ao mesmo tempo a chuva fustigava-lhe as orelhas, desalmadamente.
— Os Srs. não tem rasão para essas questiunculas improprias do sitio, da hora e da occasião. Olhem que isto não são brincadeiras. O Sr. do clarinete embirra em não caminhar muito bem, o Sr. do bombo em andar para diante, perfeitamente bem, mas a consequencia d’isto tudo é estabelecer-se um scisma nas nossas fileiras !
A este tempo a chuva redobrava de intensidade.
— Com uma noite d’estas — continuou ainda o orador — está completamente justificada, e sem desdouro, qualquer arribada forçada na nossa derrota.
— A prudencia bem entendida tambem é uma virtude, olé !… Parece-me pois que devemos seguir para a freguezia da Fajāzinha, que fica mais proxima, indo alli pernoitar, como acertada precaução para os nossos corpos, e, tambem, o que não vale menos, como garantia de segurança para o instrumental, que tanto nos tem custado a arranjar.
— Isso vae ser uma vergonha. — gritaram alguns.
— O mestre da musica tem razão — bradaram outros — primeiro que tudo salve-se o instrumental.
— Parece-me que temos facadas! — berrava o tocador do bombo, de cachimbo ao canto da bocca — para a Fajã-Grande, para a Fajã-Grande !
A chuva agora era a cantaros.
— Para a Fajāzinha — exclamaram os da frente, tornando-se os leaders da caravana.
— Pois vamos para o inferno até, se vocês quizerem — respondeu turbulento rapaz — mas eu heide fazer por ahi alem coisas do diabo. — e espicaçando a besta atirou pela segunda vez com a enorme caixa às costas do parceiro mais proximo.
— Está quieto, José. Ora este maldito!
— Cala-te ahi, meu Maricas, eu não queria parar na Fajāzinha, ca por coisas, na Fajã-Grande é que me fazia conta, cada rapariga de encher os olhos !
— É no que tu pensas…
— Podera !… pra que vim eu cá ?
As aguas iam um pouco mais brandas, ainda que o ceu continuava negro que nem tição e a passagem de uma caudelosa ribeira [Ribeira Grande], bramindo furiosa, era a maior difficuldade que então se apresentava a vencer.
— Sentido com os instrumentos — bradou o mestre — é andar depressa que d’aqui a pouco já não poderiamos passar a torrente que vae engrossando. Felizmente ainda ha pedras a descoberto. Sentido com os instrumentos, é melhor apearem-se.
Assim fizeram e com iminente perigo de alguem ser arrebatado pela corrente espumante da ribeira, e com as bestas pela redea, instrumentos ás costas e agua até quasi aos joelhos, conseguiram vadear a ribeira d’uma á outra margem.
O do bombo é que embirrou em não descer do jumento, allegando que tinha uma boia de salvação a que se agarrar no caso de naufragio, a enorme caixa que conduzia.
Atravessada a ribeira, o caminho não era tão mau como até alli. O vento quebrára algum tanto de intensidade e uma bruma enfadonha somente agora os encommodava.
O destemido florentino, continuou ainda:
— O verdadeiro é a gente mudar de rumo e seguir ainda para a Fajã-Grande, está um tempo esplendido, melhor do que isto só na força do verão.
— Não Snr., o que está dito, está dito, vamos para a Fajãzinha, que é mais perto. Quem me dá d’ahi genebra?
— Mas é que isso não me faz conta, cá por coisas, anda para diante burro…
— Silencio, Srs. — accudio o mestre da música, temendo novas questões, nós vamos em breve entrar na freguezia, e os Srs. devem-se portar como pessoas illustradas, que são. Um musico não é para ahi qualquer coisa… haja prudencia.
Estava em completo repouso, apezar da pouco adiantada hora da noite, a pequena freguezia florentina, tanto mais que o pessimo tempo que reinava era seguramente pouco azado, embora em noite de Reis, para cantorias dos campezinos menestreis.
Numa ou outra caza via-se ainda atravez das vidraças brilhar luz e os cães de vigia ladravam que nem damnados á passagem dos nocturnos visitantes.
Sentindo a tropeada das bestas abriram-se varias portas e janellas, assomando ás mesmas homens, mulheres e creanças, assustados ou curiosos do que seria aquella invasão de gente na sua muito pacifica aldeia. Alguns rapazes, mais ousados, sairam à rua e começaram a seguir a comitiva, indo tambem alguns n’um pulo, explicar ás consternadas familias que era a phylarmonica da Villa.
A cavalgada seguio sempre até em frente de uma caza ha pouco construida, de um habitante do logar, que tinha mais conhecimentos em Santa Cruz, e que, por conseguinte foi o primeiro lembrado para albergar a expedição.
Isto de ter muitos amigos da em resultado semelhantes defferencias.
O dono da caza, segundo todas as apparencias, já estava em meio do primeiro somno. Alli não se via Iuz, nem se descobria o minimo signal de vida.
Os musicos enfileiraram se em frente d’esta residencia e de repente uma alegre tocata, o hymno da phylarmonica, vibrado com a maxima valentia, esturgia os ares, fazendo estremecer as vidraças das cazas circumvizinhas e despertando toda a povoação, cujos habitantes. em crescido numero, começaram a agglomerar-se em redor dos tocadores.
Quem não apparecia ainda à janella era o dono da caza. Que pezado somno !
— Vá lá, rapazes, — gritou enthusiasmado o mestre, por ver o levante que os seus discipulos estavam fazendo na freguezia, — agora os Reis, mas isto bem cantadinho…
Calaram-se alguns tocadores e a velha cantilena d’aquella noite, proferida por vozes frescas e sonoras, e acompanhada pelos instrumentos mais doces, veio substituir o hymno em que tanto figurava a pancadaria.
Quando chegou ao côro, a rapaziada do logar e até alguns velhotes soltaram a voz tambem, juntando se aos festeiros que cantavam as glorias do filho de Maria.
Só então é que a dono da casa, alvo d’aquella alegre manifestação, appareceu por dentro da vidraça, em camiza, com um lenço branco amarrado na cabeça e com uma véla aceeza na mão.
Finda a cantilena, uma voz ergueu-se d’entre os musicos:
— Viva o Sr. Ramos !
E toda a multidão repetio : — Viva, Viva !
O bom velho vestio-se à pressa e abrindo logo a porta, disse de cima do seu balcão :
— Eu não sei quem os Srs. sejam, mas esta caza é sua, vamos a entrar…
— É gente de paz, a phylarmonica da Villa, que lhe vem dar as boas festas.
— Tantas honrarias…
— O seu a seu dono. Viva o Sr. Ramos !
— Viva ! !
— Ora esta !… eu estava bem longe de imaginar que os Srs. se encomodassem em vir de tão longe, por causa da minha humilde pessoa.
— Os amigos, Sr. Ramos, nas occasiões é que se conhecem, isto tambem é só por esta noite, o incommodo seu…
Esta conversa era já no interior da caza, aonde tinha dado ingresso a musica, alguns homens da freguezia e quanto gaiato havia n’aquellas immediações.
É proverbial o gento [?] hospitaleiro dos florentinos. O bom velho, algum tanto orgulhoso da lembrança dos seus amigos da Villa, ja fora accender o lume e cortar d’um pau atravessado a meio da chamine umas poucas de varas de excellente e gorda linguiça, que se dispunha a assar e diversos visinhos corriam a caza a explicar as familias, o que havia sido aquella balburdia, [—] a phylarmonica da Villa que viera cantar os Reis ao tio Manuel Ramos ! [—] para caza do qual voltavam carregados de pão e de carne de porco, que já se achava preparada, por ser, n’aquella epocha do anno, trivialissima nas Flôres. Vinho tambem não faltava, pois que a gente da Fajãzinha queria-se desempenhar, vendo-se honrada n’aquella distincção concedida a um seu conterraneo.
Dentro em meia hora a caza do Manoel Ramos estava atulhada de comer, e a linguiça assada espalhava por toda a parte o mais apetitoso cheiro. Á falta de copos empinavam-se garrafas e n’este destroço de viandas, pão e vinho, toda a gente da freguezia que alli estava compartilhava francamente.
O dono da habitação, que era homem bemquisto, exuberava de alegria.
Levantaram-se muitos brindes, com o mais ruidozo vivorio.
Os tocadores, uma vez por outra, para dar tempo a comida arrumar-se nos respectivos estomagos, executavam algumas peças do seu reportorio e o tocador do bombo, já esquecido das delicias de capua que imaginava na Fajã-Grande, fazia tal ruido, de seis centos demonios, com o seu atroador instrumento que estremecia toda a caza.
Prolongou-se a festança talvez durante duas horas, a linguiça já desapparecêra toda, havia sensivel diminuição nos comestíveis e o vinho… é que ainda continuava a correr em abundancia.
Um dos camponezes, mais cerimonioso, disse então a alguns dos companheiros:
— Ó amigos, estes Srs. hão de carecer de repouso. Para espairecimento d’esta noite dos Santos Reis, já temos comido e bebido á farta. Agora o melhor é a gente ir para nossas cazas.
— Ainda é cedo, a gente não se vae d’aqui, sem uma outra cantoria, para em seguida se molhar a guella…
— Bem lembrado, vamos a isso. — e o do bombo dava no cançado instrumento as duas pancadas de attenção.
As canções em louvor da Epiphania começaram então de novo, com grande enthusiasmo, como geralmente quando o bondoso povo açoriano mistura aos seus folgares o sentimento religioso, em festas embora por vezes um pouco profanas, como acontece com as devoções populares do Senhor Espirito Santo.
Era uma hora da noite e ainda alli se cantava, comia e bebia. Tudo, ainda assim, tem fatalmente um termo.
A gente da freguezia foi-se retirando, alguns homens não acertaram bem com os seus domicilios, devido seguramente á escuridão, que a outra coisa não podia ser, algumas mulheres já entradas em annos receberam tantos abraços á entrada dos maridos, como se revivesse a saudosa lua de mel, houveram diversos trambulhões pelo caminho, alguns cahiram em poças d’agua, mas tudo de boa e alegre cara. O que faz a musica…
O Manoel Ramos achou-se afinal tão somente com os seus doze hospedes.
A caza, como já dissemos, era uma construcção de moderna data, ainda incompleta e desguarnecida de caliça, tanto interior como exteriormente, fazendo por conseguinte o vento dançar n’uma agitação incessante as luzes dispostas sobre uma grande meza de pinho, ainda carregada dos despojos culinarios, bem como de garrafas e pratos vazios e de montões de cascas de laranja.
Em quanto o ajuntamento fôra mais numeroso não se sentia tanto a inclemencia da ventania que lá fóra reinava. Agora, porem, um ar frio e penetrante começou a infiltrar-se descaridoso por todas as juntas e buracos das paredes.
O quarto do dono da caza, o unico rebocado, por enquanto, da sua modesta moradia, era pequeno e apenas poderia offerecer guarida a umas tres pessoas, restando por conseguinte ainda nove individuos que era precizo accommodar convenientemente.
O Manoel Ramos, coadjuvado por um rapaz d’uns quinze annos de edade, seu domestico, foi á loja e d’alli trouxe farto molho de esteiras, que começou a desenrolar no sobrado, em quanto o rapaz ia forrando as paredes com lençoes, prezos nos buracos das mesmas, e que bamboleavam a todo o instante, saccudidos pelo vento.
— Que trabalho que estamos a dar ao Sr. Ramos!
— Qual trabalho, nem qual historia, o que eu não quero é que os meus amigos se constipem. A caza é fresquinha e a noite vai raivosa. Ó Francisco, aquella ponta do lençol não está boa, prende-a mais em baixo… anda homem. Uma noite em qualquer parte se passa, os Srs. hão de desculpar…
— Está tudo optimo e havemos dormir magnificamente.
— Deus queira, tenho-lhe feito a diligencia, mas ainda assim, duvido. Ó Francisco, vae buscar mais lençoes.
— O Sr. tinha fornecimento !
É que eu, aqui ha annos estive para me cazar, depois o conchavo desmanchou-se, mas eu sempre fiquei com o panno que tinha comprado, uma boa porção de peças. A perca foi d’ella, os Srs. não acham ?
— Certamente.
— Ó Francisco, vae buscar ainda mais lençoes, anda rapaz, que esses agora são para forrar o tecto, isto ainda não está estuquiado…
— Não são precizos mais, Sr. Ramos, este arranjo está muito bom.
— Não Srs., em quanto houver com que forrar a caza hade-se ir forrando, essa é que é boa… uma honraria d’estas.
Vieram os ultimos lençoes, o Ramos pôz uma cadeira sobre a meza e alli trepou para chegar ao tecto e de trave a trave, ajudado pelo Francisco foi pregando aquelle resguardo contra as intemperies nocturnas.
— Ora isto está que é um brinquinho — exclamou o tocador do bombo — eu até já estou a piscar os olhos e a suar.
— Isso é vinho.
— Qual vinho, Snr. Clarineta, se a gente tivesse chegado até a Fajã-Grande, cá por coisas ainda havia suar muito mais, mas emfim não me arrependo.
Estas fallas foram ditas a meia voz ao seu interlocutor e em seguida em voz alta:
— O Sr. Ramos esta perfeitamente preparado para receber hospedes.
— Perfeitamente não direi e conheço que isso são favores, mas o que posso certificar aos meus amigos é que o que ahi vêem é tudo meu.
— Maganão ! — e um dos convivas batia-lhe familiarmente no hombro.
— Isto faz-me lembrar uma historia que contava meu pae, de quando esteve n’esta terra um Sr. Bispo.
— Como foi, diga ?
— É que o Bispo, andando em visita pela ilha, veio hospedar-se em caza do vigario antigo d’esta freguezia. O bom do padre não se poupou a trabalhos para receber condignamente o seu prelado, esteirou o quarto da janta, cobrio a meza de boas auguarias e melhor vinho, apresentou a sua melhor louça, cortinados nas janellas e à noite, á ceia, em cada canto da caza collocou um rapaz, immovel, como uma estatua, de braço estendido e com um grande brandão accêzo na mão.
O Bispo gostou d’aquella lembrança, um tanto original, fartou-se de carne assada e massa sovada, mais golozeimas, e afinal não trepidou em descer da sua imponente dignidade para elogiar ao Vigario não só a boa cozinha, como o acceio e bom gosto de todos aquelles aprestos, incluindo as quatro figuras ornamentaes.
— Pois saberá V. Ex.ª Rev.ma que tudo o que está d’estas portas a dentro pertence-me e é obra minha, incluindo as tochas e tambem os tocheiros.
O Bispo olhou para os rapazes, que continuavam immoveis no seu posto e lambendo os beiços, em melifluo sorriso, a todos deitou a sua respeitavel benção. Bons tempos aquelles…
— Está visto que sim, respondeu ainda o bombo — eu cá houve tempo em que o Vigario da minha freguezia era o P.e Malhão, bom homem, muito dado, muito relacionado e que na área da sua parochia contava, segundo resa a chronica, quarenta descendentes, por isto pode avaliar-se o que é a gente nascida alli, digo-o sem orgulho.
— Quarenta !… parece exageração, ainda que…
— Pois olhem que é purissima verdade e para prova é que no folheto dos Sette Pecados Mortaes, escripto aqui na ilha, mas impresso em Lisboa, o tal Rev.do Vigario figura como representante do 3.° pecado. Aquella brincadeira, honra lhe seja, foi feita pelo P.e Camões, nosso patricio.
[Refere-se a José António Camões (Fajãzinha, 10/11 de Dezembro de 1777 — Ponta Delgada, 18 de Janeiro de 1827). A obra, de 1812 ou 1813, é «Os Pecados Mortais. Diálogo Entre um Marido e sua Mulher no Qual Fazem uma Justa Paridade dos Sete Pecados Mortais com os Sete Clérigos que não Querem para Ouvidor Eclesiástico destas Duas Ilhas Flores e Corvo ao Padre José António Camões».]
— Este diabo é um almanach — accudio o mais novo dos rapases que tocava ferrinhos, — quem era esse P.e Camões, d’esse nome nunca ouvir fallar senão n’um que, ha muitos annos, escreveu versos, meu avô tem um livro d’elle que se chama os… Lusiadas.
— Aquelle de que eu trato era outro, natural aqui das Flôres e que possuia a melhor bibliotheca talvez dos Açores. Qantos livros vocês por ahi encontram ainda, eram seus, e escreveu tambem o Testamento do Burro [«Testamento de D. Burro, Pai dos Asnos»], que é obra bem acabada e na qual não se esquecia de muitas familias d’esta terra.
— O P.e Camões ! — disse ainda o velho Ramos — conhecio perfeitamente, tinha a mania de ser ouvidor nas Lagens e por isso indispoz-se com muitos collegas d’aqui, eram trinta cães a um osso, a quem não o poupava elle pagava-lhe na mesma moeda. Morreu pobre haverá uns trinta e cinco ou quarenta annos [a estória passa-se, por isso, entre 1862 e 1867], e, diga-se a verdade, homem mais generoso jamais conheci, quanto ganhava quanto dava.
Só a papelada que elle deixou quando morreu e tudo puchado da na cabeça.
— O que não depõe muito a favor do seu bom senso, p’ra que demonio se punha o Padre Camões a cansar o juizo cá na ilha ?… Olhe o Sr. Ramos, eu cá em tendo o meu bombo em perfeito estado e duas ou três raparigas de truz a quem arraste a asa, estou nas minhas quintas, não me importo com mais nada. Se eu a esta hora estava na Fajã-Grande…
— Havias fazer grandes coisas, não tem duvida — tornou-lhe um dos companheiros. — O que me parece é que o tal Padre Camões se vivo fosse não te deixava de incluir nos seus versos, applicando-te uma bôa sóva.
— Se fosse bem dada, não me queixava.
O Ramos acrescentou ainda:
— Que elle tinha bastante graça, era ponto de fé e conservou sempre aquelle genio alegre até á ultima hora. Quando o Padre Camões, que passava a vida a lêr e a fazer versos, enfermou gravemente, já idoso, pobre e rallado de desgostos, eu muitas vezes ia visital-o, por que eramos então visinhos e disse-me por varias vezes que tinha uma gavėta cheia das suas obras, mas disso tudo deram, depois, cabo os herdeiros. Até um irmão d’elle, tambem clerigo e que fora frade foi o mais empenhado n’isso, pois dizia sempre que era o diabo quem lhe inspirava taes cantigas.
— Pedaço de bruto!
— Lembro-me até, foi no derradeiro dia da sua existencia, o Padre Camões já estava muito fraquinho, fui vel-o de manhã e em quanto lá estava chegou o irmão, que de ha muito não o procurava. O Camões sorrio e disse-lhe: Tu por aqui ?!… ora ainda bem, sempre somos irmãos e n’estes momentos esquece-se tudo…
— O Padre tem rasão — respondeu-lhe o outro — agora deve esquecer-se de tudo que não for para o bem da sua alma, congraçando-se com os seus inimigos.
— Tratantes !… com elles não quero nada.
— O P.e não falle assim, as culpas não sei se eram suas ou dos seus adversarios…
— Ah !… você deffende-os, então é tão bom como elles.
— Arrepende-te, homem, dessas inimisades, não ha ninguem perfeito no mundo e aquelle teu escripto dos Peccados Mortaes exige uma reparação solemne…
— Tu estás caçoando comigo ?… eu não disse mais do que a verdade… quiz imitar o divino Mestre, azorraguei os vendilhões do templo.
— Mano, mano, mais caridade.
— O que me parece é que tu tambem pertences à quadrilha…
— Lembre-se o Padre das penas eternas, quem offende um sacerdote offende ao Altissimo.
— Bem sei… — respondeu cançado por esta conversa o doente — colligi a esse respeito um livro de maximas, para meu uso particular e que desejo transmittir aos meus sobrinhos, tendo apenas um irmão…
— Ora, ora, ora ! com que o mano vem ao terreiro.
— Olha, faz-me este favor, é aquelle volume manuscripto n’aquella pratelleira, o terceiro… vai buscal-o, sim ?
— Vou, mas para que ?
— Abra o meu irmão esse livrinho a folhas 58.
— 58, cá está.
— Leia, agora, em voz alta o começo, é uma maxima.
O visitante pôz os pesados oculos e leu:
«Com homem que foi frade
Não ser amigo ou compadre.»
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo o que o mano aqui se deixou dizer, eu fui frade, mas…
— Não é melhor do que os outros. Estou muito fatigado, deixem-me agora descançar, isto está por pouco.
Effectivamente dois dias depois expirava o Padre Camões.
Coisas tristes, Snr. Josesinho. Isto quem é velho, como eu, tem visto muitas scenas.
— E a respeito de mulheres, o Padre Camões, era cá dos nossos, hein?
— Ó Sr., eu sei lá d’essas coisas.
— Pois, amigo Ramos, se elle apezar de ser um homem de saber, não gostava de vinho e de mulheres, cá na minha aquella perderia todo o valor. Mas é que gostou por força…
— Tu o que estás é muito borracho — accudio um companheiro — anda deitar-te, é o melhor.
— E são horas — replicou um terceiro — faltam vinte minutos para as duas.
— Eu não me deito sem uma ultima saude, e de emborcar o copo, havemos beber todos á pachorra que tem tido o dono da caza, em nos aturar. Valeu ?
— Valeu !… — bradaram todos.
Encheram-se os copos de boa genebra, fazendo-lhes tambem rasão o dono da caza e repetindo-se a dose mais de uma vez.
Quando o obsequioso velho se retirou para o seu quarto, estava pezado que nem chumbo e mesmo vestido estendeu-se na cama, cahindo logo em profundo somno.
O rapaz que com elle vivia, esse então havia já muito tempo que, completamente embriagado, dormia tambem estendido no chão frio e terreo da cozinha e os tocadores da phylarmonica, apagando as luzes, trataram egualmente de se accommodar.
Em quanto, porem. esta pandiga tinha logar no interior da caza, a noite, lá fora, sem que pessoa alguma lhes prestasse maior attenção, continuava medonha, chovia a cantaros e ventava valentemente, a tempestade proseguia n’um crescendo maravilhoso.
Quando ficou tudo em socego, uma meia hora talvez depois, a agua batia contra as vidraças como se fossem pedras, o travejamento gemia, as paredes estremeciam e de vez em quando um surdo e cavernozo som, como produzido por um pedaço de monte que se despenhasse das alturas, parecia rollar por alli muito perto, destacando-se do estampido d’uma grande levada d’agua que bramia furiosa.
Esta bulha e estremecimento do terreno tornara-se afinal tão pronunciada e medonha, que semelhava querer reduzir em hastilhas toda habitação, sentindo-se o fremir da agua a rodear a caza e aquelles soturnos baques como se fosse o troar de pezada artilleria.
— Isto é o juizo final ! — exclamou não se podendo ja conter o mestre da muzica e accendendo luz. — certamente a ribeira sahio do seu leito, estamos cercados da torrente e vamos ser arrebatados por ahi abaixo. Mizericordia !
— Bem dizia eu que fossemos para a Fajã-Grande… tambem ainda não preguei olho… quem é que pode ?
— Nem eu. — accudio um outro.
— Nem eu.
— Nem eu.
— É uma noite em claro se escaparmos com vida, se esta caza não for levada pelas aguas. Forte laço !… Ó Sr. Ramos, venha para aqui homem de Deus, isto o que será ? !
Ninguem, porem, lhes respondeu.
Dois dos rapazes levantaram-se e foram munidos d’uma vela procurar o dono da habitação ao seu cubiculo, mas o bom velho dormia o somno dos justos, o vinho havia e produzido o effeito d’um pesado narcotico, ninguem o conseguia acordar. Tentaram, ao menos, despertar o rapaz que estava na cosinha, mas este, tambem borracho, era de peior catadura, dando murros e pontapes em todo aquelle que lhe tocava e recahindo em pesado resomnar.
A tempestade, cataclysmo, enchente, ou o quer que era, estava agora no seu auge, a casa oscillava como prestes a desabar, ou como se estivesse no seio de encapellado oceano, ouviam-se ruidos semelhantes a confuzos gritos, ou ao uivar longinquo de matilhas de esfomeados tigres e o estallido das arvores que se despedaçavam vinha ainda aterrorisar mais os consternados viageiros.
Um d’elles, muito afflicto, tentou abrir uma nesga da porta para ver se enchergava o que lá ia fora.
Desgraçada lembrança, o vento deu tal empuchão na meia porta e esta no corpo do rapaz, que o atirou ao chão e uma forte lufada de vento apagou immediatamente a luz, fazendo voar os lençoes que haviam deitado de trave a trave, bem como atirando ao chão meia duzia de garrafas vazias que estavam sobre a meza. Um fracasso terrivel !
— Misericordia! — bradaram todos.
Foi preciso o esforço de varias pessoas para se conseguir fechar a meia porta, reaccender-se a luz, cuja véla e castiçal tinha ido parar ao fundo do aposento. E tentaram de novo accordar o patrão, mas sem resultado, como da primeira vez.
O tempo decorria vagaroso, a noite parecia ter estacionado no seu curso, aquillo era uma especie de jangada da Medusa, uma situação desesperada.
Tres horas, quatro, quatro e meia, cinco e a escuridão sempre a mesma, a unica differença era agora não chover tanto.
Afinal amanheceu e os olhares avidos e curiosos d’aquelles rapazes tiveram ensejo de ver um espectaculo realmente imponente.
A freguezia da Fajāzinha demora a breve distancia do mar, no declive d’uma muito elevada serra, féra e medonha, que das casas da povoação até o seu escarpado e agreste cimo conta muitos centos de metros d’altura, sendo a parte mais proxima da povoação dividida por paredes das diversas hortas e terras de semeadura e mais acima toda vestida de matto, até junto da crista da montanha, aonde se divisam informes rochas e grandes penedias.
D’esta grande altura e do resbordo d’aquellas rochas, vinda de outras mais elevadas serras do interior da ilha, despenha-se com immensa bulha, uma caudelosa ribeira, a qual quando engrossada por copiosas chuvas, como na occasião de que tratamos, toma proporções assustadoras, parecendo querer devorar na sua ingente furia tudo quanto lhe ficar adjacente.
A levada, n’aquelle salto immenso, atira-se loucamente do cimo da montanha até ao mar e cavando nas aprumadas e prependiculares rochas que lhe servem de encosto, das mesmas faz despegar grandes penedos, que batendo ora n’uma ora n’outra saliencia do precipicio, estremecem os terrenos mais proximos, produzindo um som cavo e soturno.
Á luz do dia avistam-se por vezes aquelles penedos, ora mergulhando na refervente agua, ora sahindo da mesma e dando saltos como grandes animaes selvagens, até irem sumir, alem, o seu denegrido vulto, afundados nas profundidades do mar.
Acresce ainda, para dar mais magestoso aspecto áquelle quadro, que a parte da montanha que confina com o caudal, bem como o sitio por onde esta se despenha, é escalvado e todo formado de rochas talhadas pela natureza com tão singular aspecto, que imitam perfeitamente diversas fileiras de gigantescas columnas, umas as outras sobrepostas, até ao cimo da serra.
É magestoso, como um quadro de Salvador Rosa [Salvator Rosa (Arenella, Nápoles, 20 de Junho ou 21 de Julho de 1615 — Roma, 15 de Março de 1673), pintor, poeta, actor e músico italiano do período barroco].
Ora, como na occasião de que tratamos a levada tivesse engrossado muito, nas proximidades da freguezia e na parte do monte em que o terreno já não era tanto a pique, a agua havia-se alastrado pelas hortas que medeiam entre a ribeira e a povoação, as quaes como geralmente acontece nos Açores, eram todas divididas por paredes.
Do momento que a ribeira quebrou algum tanto de furia, a vazante da agua que cobria as hortas, começou a correr dos predios que ficavam mais elevados para os mais baixos, atravez dos buracos e fendas dos muros divisorios, formados de pedras mal unidas e isto de tal sorte que formava os degraus de uma grande cascata, a começar a meio do monte, apresentando uma esplendida vista, quando alli se reflectiram os primeiros raios do sol.
E por vezes, como é sabido, a inundação das hortas tem occorrido com tal abundancia de agua, que quando esta escoa em direcção ao mar, o seu impulso tem mechido com os muros e terra em que estão firmados, dando-lhes differente posição do que antecedentemente, sem os desmoronar.
O dia de Reis, ainda assim, fez honra ao grande mysterio que recordava, o vento depois de tanta chuva havia afinal rondado ao norte e, embora frio, tornava os corpos ageis, o ceu desanuviara-se, deixando ver grandes espaços azues e o sol dava um tom alegre à pequena aldeia florentina.
Com aquella brilhante madrugada reappareceu a alegria dos rapazes, como na primavera qualquer arvore toucada de flôres faz chilrar jubilosos os campezinos passaros.
A phylarmonica tratou de se pôr em ordem de marcha, pois queria chegar à Fajã-Grande à hora da solemne missa da Epiphania, uma escova trabalhou arduamente nos fatos dos viageiros, o tocador do bombo conseguio que lhe emprestassem um chapeu, o dono da casa levou muitos abraços e dois ou tres beijos d’algum mais expansivo hospede, apromptaram-se as bestas, que tinham passado a tormenta n’um palheiro e ás sette horas da manhã, tocando uma festiva marcha e aos sons dos hurrahs d’alguns homens do logar, sahio a phylarmonica em direcção da outra freguezia.
O trajecto, d’esta vez. foi mais feliz, iluminado por providente sol e quando o P. Vigario da Fajã-Grande subia os degráos do altar para a missa cantada da Epiphania, entrou na egreja, estrugindo tudo, a phylarmonica de Santa Cruz.
Foi um dia cheio.
O Padre havia-se de antemão preparado para a condigna recepção dos seus numerosos hospedes, cuja visita de ha muito estava annunciada e no presbyterio nada faltava, tanto em solidos, como em liquidos, meza franca, à antiga portugueza, e cara alegre.
A vacca e o riso de Frei Bartholomeu dos Martyres, mas com menos parcimonia do que usaria aquelle santo varão.
Os musicos acharam-se tão bem na Fajã-Grande, que ainda durou tres dias aquella grande patuscada.
Isto faz honra á hospitalidade d’aquella povoação, incluindo os dois sexos.
— Oh! que abundancia de raparigas de encher os olhos. — exclamava repetidas vezes, com o mais sincero enthusiasmo, o nosso conhecido D. Juan desta festança — isto é que é uma terra ! !…
Effectivamente, na freguezia de que tratamos, pode-se viver muito rasoavelmente, sendo uma das mais importantes povoações da ilha das Flôres, tendo varios e bem sortidos estabelecimentos de commercio, muita animação, gente abastada e diversas industrias.
É d’alli que, durante o verão, vem quasi toda a fructa que se vende na Villa de Santa Cruz, sendo muito afamados os seus figos e maçãs.
É prudente, porem, como aconselhamos ao leitor, não visitar aquelles sitios senão n’essa quadra do anno, para evitar scenas identicas ás que acabamos de referir, passadas na noite de Reis.
Nem todos são novos e nem todos são membros d’uma phylarmonica, tendo alem d’isso muita saude e numerosos companheiros, que o distraiam.
Nota do professor emérito Manuel Menezes de Sequeira, a quem agradecemos a pesquisa e a oportunidade de a partilharmos com os nossos leitores.
Belíssimo texto de Ernesto Rebello, ou melhor, Ernesto de Lacerda Lavallière Rebelo (Lisboa, 26 de Abril de 1842 — Horta, 15 de Novembro de 1890), notabilíssimo escritor e jornalista açoriano. É incompreensível, devo dizer, que a sua obra não esteja facilmente acessível ao público, mas sim enterrada nos arquivos e bibliotecas regionais, ou em outras obras igual e incompreensivelmente difíceis de encontrar, como é o caso do Archivo dos Açores, obra essencial para os Açores, cujos primeiros 12 volumes foram da responsabilidade de outra enorme figura açoriana, Ernesto do Canto (Prestes, Ponta Delgada, 12 de Dezembro de 1831 — Ponta Delgada, 21 de Agosto de 1900) historiador, bibliófilo e político, irmão de outra figura maior dos Açores, José do Canto (Ponta Delgada, 20 de Dezembro de 1820 — Ponta Delgada, 10 de Julho de 1898). Trata-se do 11.º dos 17 capítulos do 1.º volume das Notas Açorianas de Ernesto Rebello, e está publicado no volume VII do Archivo dos Açores, de 1885, páginas 159 a 175. O pormenor do texto torna claro que Ernesto Rebello esteve nas Flores. Ou, pelo menos, que bebeu de alguém de forma impecável a experiência de um temporal florentino, em particular na Fajãzinha. O texto é delicioso. Impecavelmente escrito, descreve a viagem e os percalços de uma filarmónica que, algures entre 1862 e 1867, ou talvez 1878, como se indica no início do texto, pretende ir tocar na Noite de Reis à Fajã Grande. Pelo meio, aprendemos sobre o Padre Camões, a instabilidade dos terrenos na Fajãzinha, a força da Ribeira Grande, etc. É o melhor que pode ter quem nunca por cá dormiu numa noite de temporal… Melhor: o texto é bem divertido.
José Arlindo Armas Trigueiro, no seu Histórias e Lendas da Ilha das Flores, de 2013, sintetiza este texto. Creio que Pierluigi Bragaglia também o apresentou num dos seus escritos. Aqui vai ele na íntegra. Boas leituras!
