DIÁRIO DE UMA VIAGEM PARTILHADA POR PEDRO ALMEIRDA MAIA

Apresentação do oitavo volume da série ChrónicAçores, «Diário de um homem só: Uma viagem interior», de Chrys Chrystello

O oitavo volume de ChrónicAçores de Chrys Chrystello, Diário de um homem só: uma viagem interior, apresenta um relato íntimo do autor, focado na experiência de luto após a perda da nossa querida Helena Chrystello. Narra os acontecimentos desde o internamento, em dezembro de 2023, até cerca de um ano após ela nos deixar, misturando memórias pessoais com reflexões sobre outros temas.

Quando o autor me convidou para apresentá-lo, senti o peso da responsabilidade. Falar da perda não é fácil, em nenhuma ocasião, sobretudo em público, e também eu sentia a falta da Helena, sensação que perdura em todos os que tiveram o privilégio de a conhecer.

Mas havia um bem maior na possibilidade de me dirigir ao Chrys que não por mensagens de alento e palmadas nas costas. Também seria uma oportunidade de sugerir um título diferente para este livro. Claro que já não vamos a tempo: foi dado à estampa e está aí, nos escaparates, nas vossas mãos, fora do prelo. Nem me atreveria a sobrepor-me à escolha; logo eu, que batalho com os títulos! Mas vou justificar o porquê de, hoje, de forma despretensiosa, sugerir uma alternativa, que adiante revelarei.

Já dizia Ralph Waldo Emerson: «Só metade do homem é ele próprio; a outra metade é a sua expressão». Em 2020, para o posfácio do sexto volume do ChrónicAçores, de seu título Alumbramento: Crónicas do Eden, considerei Chrys Chrystello um «cronista iluminado». Como mensagem central desta minha comunicação de hoje, gostaria de começar por voltar a elogiá-lo, sublinhando que continua a sê-lo: cronista iluminado. Chrys é um cidadão do mundo que acredita no multiculturalismo. A sua mundividência confere-lhe uma perspetiva ampla, mas também um sentido de «forasteiro» com uma visão crítica sobre as diferentes realidades locais.

Chrys dedica-se ao jornalismo e à tradução desde 1967, com mais de duas dezenas de livros publicados. Encontramos no traço da sua escrita o idealismo poético, e o estilo pode caracterizar-se como controverso, satírico e irónico. Chrys utiliza a escrita como forma de expressar as suas opiniões e defender causas, como a liberdade de expressão.

As suas crónicas anteriores já abordavam frequentemente a realidade sociopolítica, fazendo uso da crítica à ineficácia dos governos, à desigualdade social, à falta de visão a longo prazo na educação e na saúde, e ao atraso civilizacional dos Açores e de Portugal em certas matérias. Na lucidez e na pontaria que caracterizam as suas crónicas, Chrys pode ser visto como um George Orwell lusófono.

No conjunto de textos que integram este oitavo volume, aborda igualmente questões como a política, as tradições culturais dos Açores, a sustentabilidade da água e as implicações da inteligência artificial, tudo integrado na vida diária de quem leva uma longa e produtiva carreira. Mas junta-lhe as questões do luto, o que transforma este livro num belo objeto de homenagem póstuma, até revelando escritos inéditos de Helena e a influência que ela teve na vida e obra do autor.

Se todos os temas abordados fossem os planetas do Sistema Solar, a Helena seria o centro do movimento desses astros: seria o Sol. De certa forma, foi e continua a ser uma luz que nos guia. Disso não há dúvida. Porém, o mais incrível que pude constatar foi o questionamento do autor sobre o propósito da vida, a natureza da felicidade e a inevitabilidade da morte, reflexões que poderíamos considerar desafiantes para um homem que se autoproclama ateu.

Chrys descreve a vida sem Helena como uma «greve de serviços mínimos», «diário do quotidiano inútil». Ilustra a dor e a solidão — ambas crónicas — e ironicamente escreve no género crónica. O autor descreve a própria vida como estranhamente silenciosa e vazia, um sentimento de solidão que nunca imaginara. Relata a incapacidade de trabalhar ou de se ocupar intelectualmente: «a dor muda de forma, mas nunca desaparece».

O Diário de um homem só também é autoterapia: Chrys dá início a estes escritos como uma forma de lidar com o medo, mas mais do que espalhar notícias dela, espelha-se a necessidade de partilhar a «dor comum». Segundo o próprio, utiliza a escrita para lidar com a «inabilidade em viver só», percebendo-a como uma catarse para os «silêncios, prantos e medos».

É notório que a passagem do tempo se torna elástica e imprecisa, com os dias a apressarem ou a estagnarem-se, e a memória a evocar o passado como se fosse recente. A mudança leva-o a reavaliar amizades e ligações familiares. Enfrentando também os seus próprios dilemas com a saúde, compara sofrimentos e menciona que Helena o «recuperou para os vivos» de um vício, mostrando a profundidade da sua dívida e amor por ela.

Expressa ceticismo quanto à natureza humana, considerando o Homo Sapiens uma «besta destrutiva», e prevê um futuro onde a Inteligência Artificial poderá «prescindir de nós» devido às nossas imperfeições e irracionalidades. O autor revela ideias íntimas, com a extinção do ser humano a servir de catalisador para a tal profunda introspeção sobre a vida, mas também sobre a solidão, a memória e a natureza das relações, tudo filtrado pela lente jornalística, observadora e crítica da sociedade. É um registo visceral da dor e de um processo de luto, uma narrativa universal sobre a perda.

Chrys descreve a experiência do luto de forma profunda. Considera irrecuperável a dor da perda. Não acredita que o tempo possa curar, moldando a perceção do mundo e de si próprio. A convicção de que a dor veio para ficar é recorrente, contradizendo a ideia comum de que o tempo cura todos os males, noção por ele rejeitada. E cito: «A saudade mantém-se, as lágrimas secaram, mas a dor continua mais profunda», as «lágrimas internas continuam, mais abundantes do que as de Iguaçu ou do Niágara».

Refere uma «dicotomia (que não controlo nem manejo como quero) entre o cérebro analógico e racional e o que se deixa levar pelos aspetos emocionais do luto e da saudade». O cérebro «cada vez é mais ineficaz e desajustado da realidade lógica e sensata. A tua morte baralhou-o totalmente». E interroga-se: «Porque é que o cérebro se obstina em recusar a tua desaparição, sendo eu pessoa racional e lógica, razões mais do que suficientes para encarar a ausência como um fait accompli, inelutável, real e irreversível?». E descreve «momentos surreais em que sonhei que a Nini estava a chegar a casa depois de ter ido lanchar com as colegas» e «oiço a sua voz».

A vida de Chrys é caraterizada como a tal «crónica do quotidiano inútil», e conclui que «deixou de ter utilidade ou um fim». Descreve-se como «homem amputado, incompleto, derrocado, mas não derrotado», um «zombie» ou «autómato» a cumprir rotinas. A solidão é um «tormento que é acordar, repetir novas rotinas sem nexo nem razão, além de sobreviver», numa «inabilidade em viver só». As declarações do autor realçam a verdadeira dimensão do desaparecimento não só da esposa, mas também da mentora e da fonte de inspiração, aliás, como se tivesse voltado a dizer adeus a um pai, uma mãe, um irmão ou uma irmã.

O diário é, então, uma forma de «catarse» para lidar com os «silêncios, prantos e medos». Procura ajuda, «para que eu os considerasse normais e frequentes a quem vive tais situações», referindo-se aos seus pensamentos e «momentos surreais». A profundidade, a persistência e a totalidade da dor sugerem que o autor olha para a ferida como não cicatrizável, afetando de forma indelével a psique. Ele próprio reconhece a «dependência emocional» e descreve-se como «egoísta» em querê-la viva, mesmo que em sofrimento, pois ela libertou-se dos «males terrenos».

Podemos considerar esta condição como um luto complexo e prolongado, onde a dor se tornou uma parte intrínseca da identidade e da forma de estar no mundo, mesmo com a procura de apoio e os esforços para se manter ativo. É como se a alma tivesse perdido uma âncora fundamental, e, embora o navio continue a flutuar, com a ajuda de terapeutas, amigos e projetos, está momentaneamente à deriva num oceano de memórias, incapaz de ancorar novamente ou de deixar para trás a ilha que afundou.

Por fim, o autor identifica em si a «teleofobia», condição relacionada com a ansiedade ou insegurança em «firmar compromissos ou criar metas de longo-prazo».

Discordo deste autodiagnóstico. Considero-o um rótulo dispensável, uma sentença insustentável. Apesar de tudo, Chrys Chrystello continua a realizar tarefas diárias e a trabalhar em projetos seus e da Helena, como a compilação do livro de humor e a homenagem póstuma.

A prova de que o autor ultrapassou mais esse medo é estarmos hoje aqui reunidos para celebrar este livro: um livro é um projeto de longo-prazo, uma manifestação de pertinácia, resiliência, coragem. Truman Capote dizia: «O único recurso que conheço é o trabalho». Chrys Chrystello trata o trabalho por tu.

Não podemos imaginar a dor do autor, mas compreendemos agora a sua profundidade. Este volume serve também para honrar a memória de Helena, e pode servir de caminho, rumo ao propósito e à construção de outros projetos de longo-prazo. É inspirador ver como, apesar da dor e solidão descritas como um «tormento», Chrys persiste.

O diário em si é uma prova de compromisso de confronto do medo; concluir projetos inacabados é fruto de um empenho hercúleo, mas não impossível, afinal; e homenagear a Helena das várias formas possíveis, de filmes a poemas, passando pelos Colóquios da Lusofonia, é manter vivo o legado que construíram juntos e pelo qual lutaram — e continuam a lutar: não separados, não sozinhos, mas continuamente juntos. Em vez de viver os anos da vida, viver a vida dos anos.

Estes atos, embora aqui descritos como movidos por um «autómato» ou caracterizados como um «quotidiano inútil», em estilo de autoflagelo, são, na verdade, compromissos valiosos de longo-prazo que o autor já está a concretizar. A Helena era a «musa, a força oculta que [o] movia, a voz silenciosa», e continuar a escrever, mesmo que seja sobre a sua ausência, é uma forma de mantê-la presente e de materializar essa inspiração.

A pena que o permite redigir estas páginas é um poder ainda ao alcance, com o qual transforma a dor em arte, a solidão em reflexão, e o vazio num espaço para honrar quem amou. A escrita já é o seu projeto de longo-prazo, um rio que continua a correr, alimentado pelas memórias, pela saudade e pela própria necessidade de comunicar. Os vencidos procuram a vida com o olhar no chão; os vencedores encontram-na no azul do céu.

Talvez não seja preciso ver o fim do caminho para continuar a andar, talvez baste um passo de cada vez. Cada linha que Chrys escreve, cada projeto que avança, é um passo que honra a sua história e a de Helena, criando um legado que, por sua vez, se tornará um farol para os que vierem a seguir. A Helena continua presente através destas palavras, e essa presença pode guiá-lo, mesmo sem a necessidade de definir metas distantes, permitindo que a própria criação se torne a maior recompensa.

Milan Kundera afirmou que «o escritor que começa um livro e o escritor que o acaba são duas pessoas diferentes». O Chrys Chrystello que terminou este diário é uma pessoa diferente do Chrys Chystello que o iniciou. Claramente, a sua capacidade de escrever, de refletir e de partilhar já demonstra a sua forma de «lutar pelo que se ama». Talvez por isso, este livro devesse intitular-se Diário de uma viagem partilhada, título que atribuí a esta comunicação, que agora concluo.

Diário de uma viagem partilhada. Soa bem? Obrigado, Chrys, por partilhar connosco esta viagem. Muito obrigado pela vossa atenção.

Ponta Delgada 04/10/2025 — Livraria Letras Lavadas

Pedro Almeida Maia, escritor. O seu mais recente livro, Condenação, foi publicado recentemente em Portugal.

Imagens do lançamento na livraria Letras Lavadas:

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