Em nome do pai. Uma leitura de “Condenação”, de Pedro Almeida Maia, por Alexandre Borges.

Salvador Silver. Eis o nome do nosso herói trágico. O sibilino nome ficcional com que Pedro Almeida Maia protege a privacidade do homem real que inspirou a história de “Condenação” e a dos familiares que possam ainda estar vivos, ao mesmo tempo que homenageia a criatividade do encontro entre a nossa diáspora e a América, sempre pronta a transformar o mais luso dos apelidos em nome de estrela de cinema; a mesma que fez Steve Perry de um Estêvão Pereira ou Alfred Lewis de Alfredo Luís. O mais problemático dos nove filhos de Maria do Céu Silva partiu ainda criança de Água d’Alto, ilha de São Miguel, com a família, rumo aos Estados Unidos de há um século. Perdeu pai e irmãos demasiado cedo, fracassou na escola e foi-se metendo em aventuras e desventuras que o levariam ao mundo de Al Capone, da Mafia e do caso Sacco-Vanzetti, um dos processos mais célebres da justiça americana.

Logo nos primeiros capítulos, ficamos a saber tudo aquilo de que precisamos para levantar o olhar do livro e jurar já só ver em volta a América dos “roaring twenties”. De Chaplin e do jazz. Do Ku Klux Klan e de Babe Ruth. De Carlo Ponzi, inventor do esquema da pirâmide, dos serões passados em família, a ouvir telefonia, e da fatal 18ª emenda, a “lei seca”, que proibia a produção, comercialização e consumo de álcool e que, na verdade, só fez multiplicar a proliferação de alambiques caseiros um pouco por toda a parte, incluindo nos lares açorenhos, onde por vezes, conta o autor, se lhes atribuía “mais importância do que à coroa prateada do Divino Espírito Santo” (p. 65).

O que se fumava e o que se comia, o que se bebia e não devia, o que se vestia, dizia, pensava, como eram as armas que usavam, os carros que conduziam, e por que estradas, como se aparava o bigode, os graus de adesão à Mafia e até o funcionamento detalhado do mecanismo da cadeira eléctrica. De tudo isso constam estas páginas. E, no entanto, entre assaltos e homicídios, enganos e vinganças, perdas e orfandade, “Condenação” é uma leitura surpreendentemente fácil, torrencial, porque Pedro Almeida Maia leva o leitor à boleia desde a página um.

Do Massachussets à Califórnia, de Nova Iorque ao Texas e até ao México, das celas da prisão às tendas de circo, de carro, a comboio e a cavalo, em fuga e sessões privadas de contorcionismo, de quedas aparatosas sobre bosta de elefante ao prestigiado posto de segurança de bordel, de leitos conjugais e extraconjugais, da Emma antes Emanuela, da Olga e da Gina, da ruiva da sacristia, de Yellow, de Saudade, de Mae, Tessie e até da estenógrafa Sadie Thompson, às memórias da casa, distante, longínqua, algures deixada lá num paraíso perdido, a meio do Atlântico, quando tudo ainda poderia ter sido outra coisa, outra vida, melhor, mais sã, menos sangrenta, mais acompanhada, tutorada, levada pela mão, menos órfã, solitária – tudo é uma só grande e fantástica viagem.

“Mas retomemos a viagem nos carris, prezado escritor. Nos dois dias seguintes a bordo do sleeping car e sujo da fuligem do comboio, Salvador atravessaria o Tennessee fazendo paragens nas cidades de Nashville e Memphis para comprar tabaco, álcool e sanduíches. Cruzaria o Arkansas por Little Rock e chagaria ao estado do Texas, mudando de direção em Dallas (…). Chegado à Houston Union Station pela noite dentro, depois de milhas e quilómetros de pouca-terra, pouca-terra, Salvador abriu os olhos remelentos e espreguiçou-se. Podia aventurar-se nas ruas texanas para desentorpecer os músculos das pernas, desenferrujar o esófago com uma tripla dose de whisky de milho e meter o sexo onde era suposto. Era a dessalvação.” (pp.138/139)

O nome. O que há num nome?

Um dos artifícios mais interessantes de “Condenação” reside no seu narrador, cuja identidade demoramos a descobrir. Um narrador que, assumidamente, é outro que não o escritor – e que, aliás, o coloca na curiosa posição, não de emissor, mas receptor das linhas que agora nos chegam às mãos. Alguém que testemunhou a saga de Salvador Silver e a deposita junto de quem lhe possa fazer justiça – literária, ao menos. De quem a saiba contar, escolher o melhor, cortar o que não importa, entender as subtilezas, fazer sentido do que, aparentemente, no fim, contemplada a vida desde o banco dos réus, possa não fazer sentido algum.

É este narrador-mistério que, a dado passo, faz uma das coisas mais honestas que temos visto na ficção recente: confia ao leitor a sua insegurança quanto ao nome do livro. Que título lhe dar? “O Perfume da Pólvora”, “A Balada de Salvador Silver”, “O Bandido de Água d’Alto”, “Imortalidade”, “O Lobo de Providence” “O Inverno de Salvador”, “A Fronteira Ocidental”, “O Mafioso de Boston”, “Fuga ao Abandono”. E vai experimentando hipóteses, capítulo após capítulo, cada uma delas fazendo luz sobre algum aspecto parcelar da história, e assim prestar guarda de honra à chegada da escolha final, a hipótese vencedora: “Condenação”. Não é, pois, um nome qualquer. A questão não são tanto as aventuras e desventuras do saltimbanco Salvador Silver, não é a curiosidade exótica do gangster açoriano na América, não é sequer, propriamente, o imaginário assustador, mas sempre sugestivo da Máfia ou da Lei Seca, do contrabando e desse mundo a recompor-se da guerra. A questão, acima de todas as outras, é a sentença.

Qual foi, afinal, a condenação que sofreu Salvador Silver? E em que momento foi sentenciada? No fim – ou no princípio? Ou a meio, numa escolha qualquer, um carro em que não devia ter entrado, uma arma que não deveria ter disparado, um dia mais que deveria ter ficado na cama de Yellow, a mulher-bala, todos os dias disparada dum canhão? E que tem tudo isto a ver, se é que tem, com a inesgotável admiração de Salvador por Houdini, o grande escapista?

É no último terço que “Condenação” sobe ao seu plano mais alto, quando até já trocou a estrada pelo cárcere, e se ocupa então de lidar com as paisagens interiores do ser humano.

“Foi como se Salvador enfiasse a cabeça na água fria e a acção lentificasse, um pavor a subir-lhe às ideias a sugerir o desmaio ou o disparo. Ele já era americano, e ser americano era aquilo: ser americano era disparar. Na verdade, ser americano era muito mais do que disparar, mas Silver aprendera somente uma parte da lição: a que menos importava. Ele era um americano-tornado-americano, porque na essência, no sangue e na alma, continuava a ser ilhéu, um açoriano fora do ninho. E ao colocar-se tudo na balança, o atlantismo de um lado e o americanismo no outro, pesava mais o lado ruim, o aprendido, ao invés da pureza, e o peso condensou-se num pensamento, que por sua vez foi julgado no tribunal da própria cabeça, o bem e o mal a apresentarem as suas alegações, a vociferarem como lobos, e no fim o juiz a decidir batendo com o martelo uma vez, e outra, e outra, gritando “mata”, e assim descendo a mensagem pelo pescoço abaixo, inundando-lhe o coração (…).” (p. 214)

Depois, claro, falta falar de uma questão. Porque é que “Condenação” não importa só a açorianos, ou a interessados em histórias da Mafia, ou na América de há um século? Porque tudo isto está aqui, agora. Diz respeito a todos nós.

“São os sítios a que chamamos casa, prezado escritor. O nosso lar é onde se nos quedam os pés. Sabemos que estamos em casa quando desistimos de fugir dela.” (p. 164)

Somos informados desde a contracapa que a história de Salvador Silver, ou a do homem que o inspirou, acabará, mais cedo ou mais tarde, por se cruzar com a de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, um dos processos que mais tinta fez correr na história da justiça americana, quando dois anarquistas italianos foram acusados e condenados à morte pelo homicídio de dois trabalhadores de uma fábrica de sapatos, na sequência de um assalto que teria dado para o torto. Sucede que, nesse mundo que então passava fome depois da Primeira Guerra e da Gripe Espanhola, cruzavam-se o início dos movimentos fascista e comunista e os fantasmas do nascimento de uma nova ordem, acelerados pelo crescer dos movimentos migratórios de gente em busca das condições de vida que o mundo como até ali existira e agora colapsara, já não era capaz de oferecer. Na América que então emergia, perante uma Europa de rastos e um mundo a braços com o fim de quase todos os impérios, a chegada massiva de imigrantes alimentou o crescimento económico, mas também o receio da propagação de ideias subversivas.

Apesar de toda a contestação à detenção de Sacco e Vanzetti, que poderiam ser acusados de promover acções anarquistas, mas dificilmente de coisa mais sanguínea, os dois imigrantes poderão ter pagado pela culpa de serem, simplesmente, isso mesmo: imigrantes, forasteiros, causa de todos os males quando não se encontra outra melhor, tal como Salvador, a quem, a dado momento, o juiz trata como sendo farinha exactamente do mesmo “sacco” porque, segundo ele, açoriano ou italiano, era tudo igual. Como, quem sabe, mexicano ou venezuelano, porto-riquenho ou salvadorenho, indiano, bangladense ou paquistanês. Afinal, como contam imigrantes aparentemente tão distintos como os Silva de Água d’Alto ou Al Pacino em “Sonny Boy”, sua recente autobiografia, a América nunca foi fácil para as pessoas de nome acabado em vogal. Já por aqui, deste lado da geografia e das línguas latinas, talvez, sejam as consoantes, muitas consoantes seguidas, sílabas de aspiração difícil – o estranho, em geral.

O que há num nome? Como, quando e por que razão decidimos as nossas condenações? 100 anos depois, será que, em vez de evoluir, andámos em círculo?

Alexandre Borges, escritor

Condenação – A História de um Gangster Açoriano na América

Pedro Almeida Maia

Cultura Editora

Lisboa, 2025

328pp.

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