A nota por José do Carmo Francisco

Nova série retratos 60

Não é fácil escrever sobre tudo aquilo o que está muito perto, às vezes demasiado perto mas não deve haver temas proibidos. As coisas são como são. É um simples nota de dez euros que está numa moldura. Foi a última nota dada num fim de semana pelo avô materno do menino de treze anos e do seu irmão de oito. Mais do que uma moldura, trata-se aqui de uma grande memória afectiva, tal como na mesma estante de livros e filmes, aparecem as fotos dos dois primos ingleses, da avó materna, do irmão mais novo, do primo do Canadá, do pai ainda com muito cabelo, dos avós do avô paterno em 1979 com uma bebé ao colo, menina essa que hoje tem quarenta e seis anos de idade e vive em Londres. É toda uma espécie de panteão privado que na estante fala por si, sem precisar de mais explicações. Num tempo em que a morte é servida na televisão ao jantar a todos nós como se fosse a coisa mais natural do Mundo, é, bem pelo contrário, a vida aqui relevada na nota de dez euros que não vai mais servir para comprar gelados, uma consola ou um jogo de computador mas sim para ser (ela mesma) o grande retrato de um tempo pleno e feliz de encontro e de harmonia entre o avô materno e estes netos. Enquanto hoje todos os dias morrem meninos em Gaza tão atónitos como os meninos do Gueto de Varsóvia há 81 anos, vítimas dos terroristas da Gestapo ou das S.S. ou os meninos de Der Iassine há 76 anos, vítimas dos terroristas da Irgun e da Stern, há dois meninos em Lisboa que usam uma nota de dez euros para lembrar o avô materno. Afinal, tal como num poema, os meninos olham a estante e juntam de novo tudo o que a morte separou.

José do Carmo Francisco, escritor

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