Madre Pedra,ou o grão da voz de José Francisco Costa por Víctor Rui Dores

“Deixa-te ficar.

Entre mim e ti

Há terra e o mar.” (pág. 28)

A poesia não é um ato de vontade – é um ato de vocação, através do qual o poeta exprime sentimentos, emoções e estados de alma. Escrever um poema é um ato de felicidade que resulta, quase sempre, de uma angústia. Precisamente a angústia que há em saber escolher e lapidar as palavras exatas, únicas e essenciais.

É este precisamente o ofício de José Francisco Costa, cujo livro, Madre Pedra (Letras Lavadas edições, 2024), acabo de ler com aquele “plaisir du texte” de que falava Roland Barthes.  Apresentando-se com cuidada composição gráfica, a obra tem capa de Jaime Serra, apetecível foto da capa de Onésimo Teotónio Almeida, ilustrações muito bem conseguidas de Conceição Lopes e um avisado prefácio de Eduardo Bettencourt Pinto, para quem José Francisco Costa é um “poeta musical”.

Concordo plenamente e tenho cá para mim que, se tivesse vivido em plena Idade Média, José Francisco Costa teria sido certamente jogral, trovador ou menestrel, já que ele é, simultaneamente, poeta, cantor e músico. Um poeta-cantor-músico que chegou à poesia por via da tradição oral. Por isso há nele a “linguagem que canta” (Verlaine) e o tal “ouvido que escreve” (expressão do modesto subscritor destas linhas). Por isso sente-se, na sua escrita, o pulsar da expressão lírica portuguesa, com raízes fundas e profundas no cancioneiro açoriano, ele que é autor da letra e da música do “Velho Pezinho”, composição bastas vezes tida (e confundida) como fazendo parte integrante da música tradicional dos Açores.

Nesta matéria, e para exemplificar que nada nasce do nada e que tudo tem um momento de criação, costumava eu dizer aos meus alunos do Conservatório Regional da Horta que, algures pelos séculos XVIII e XIX, alguém com muito bom gosto poético e musical criou a letra e a melodia dos “Olhos Negros”, da “Saudade”, da “Lira” ou do “Meu Bem”, cantigas que, pela sua qualidade poética e musical, revelam uma origem mais artística e erudita (até pela predominância dos tons menores) do que popular (tons maiores) e, por conseguinte, terá sido, quanto a mim, um padre ou um mestre-escola os seus autores, e não propriamente o “povo” que, em tempos pretéritos, era, como se sabe, iletrado.

Por conseguinte, o “Velho Pezinho” caiu já no domínio público, o mesmo sucedendo com outras canções como “Ilhas de Bruma” (letra e música de Manuel Medeiros Ferreira) e “Chamateia” (letra de António Melo Sousa e música de Luís Alberto Bettencourt), com a vantagem de as suas autorias estarem hoje devidamente registadas na Sociedade Portuguesa de Autores.

Poeta de agudíssima sensibilidade e de apreciáveis recursos sensoriais, pesquisador subtil de realidades visíveis e invisíveis, José Francisco Costa soma e segue. A(s) ilha(s) continua(m) a ser o epicentro do seu imaginário, isto é, do seu roteiro sentimental e afetivo. Por isso, desta vez sentou-se numa pedra da memória, para, antes de mais, inquirir o seu próprio ato de criação poética: “Nunca sei aonde me leva o poema” (pág. 81).

Numa escrita da intimidade e da expressão lírica, Madre Pedra é atravessado por olhares cruzados e memórias soltas, através dos quais o poeta (re)visita lugares, pessoas, coisas e momentos fugazes que lhe povoam o imaginário…  O grão da sua voz faz-se ouvir no elemento vocal e sonoro das palavras, digo, na musicalidade das vogais abertas, nas tónicas sempre certeiras e na prosódia cuidada. Leia-se, a propósito, o excelente poema “(Canarinho em cantilena)”, págs. 49/50.

Este é um livro de partidas e chegadas, de encontros e reencontros e que nos remete para uma modernidade enxertada na seiva da tradição. Nas suas páginas voam garças, pairam gaivotas e a saudade ronda por perto. Eis uma poética (sensorial) ancorada na terra e no mar. Daí a sua vertente telúrica: as ilhas em todo o seu fascínio e a natureza em todo o seu esplendor. A navegação (musical) num oceano de partilhadas emoções. Mas também a revisitação de tradições, de festas (profanas e religiosas), cantos e folias. E o amor sempre em visita.

Acima de tudo, o que me fica da leitura deste Madre Pedra é a maturidade de escrita de José Francisco Costa, colecionador de memórias e artesão de palavras.

Horta, 05/10/2025

Víctor Ruir Dores, poeta

https://www.letraslavadas.pt/madre-pedra/

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