
Foi com apreensão que aceitei o convite, feito pela caríssima amiga Fernanda Enes, para umas breves palavras de apresentação na Casa dos Açores do livro do seu marido José Enes, Açores no Coração. Textos de crítica literária e cultural. Receei por não me sentir capaz de tal, tanto mais que o livro vinha precedido de um excelente prefácio da Leonor Simas-Almeida e do Onésimo Almeida. Além disso, o fulcro da sessão seria, segundo julgo, a comunicação “José Enes: o Filósofo e o Cidadão”, por Silveira de Brito, e o lançamento de outro livro, este de Onésimo Almeida “José Enes, Filósofo, Pedagogo e Mestre. Uma homenagem”.
Apesar disso, aceitei por dois motivos. O primeiro não permitiria que recusasse, pois José Enes foi meu professor, depois prefeito, poucos anos passados colega e desde sempre amigo. E explico:
Com 17 anos, no 2º. ano do Curso de Filosofia, do Seminário de Angra, José Enes foi meu professor. No 1º. ano, o professor dr. Simão Bettencourt, um sábio humanista, introduziu-nos na filosofia escolástica com o célebre compêndio latino de Charles Boyer, e deixou-nos um pouco entregues ao compêndio. Nos 2º. e 3º. anos tudo mudou, os compêndios não deixaram de existir, mas através dos apontamentos elaborados e pela discussão crítica, com José Enes aprendemos a reflectir, a iluminar a vida com outras análises, aparentemente simples, mas actualizadas com os novos caminhos do pensamento. O desenvolvimento humano e intelectual dos alunos em primeiro lugar.
Verifico que ele, na verdade, sempre pôs em prática um desejo manifestado em carta de 1945 ao colega e amigo Cunha Oliveira, “com sinceridade perante a vida, e este meu gesto para vencer, da vitória mais bela e útil: a vitória em que se não triunfa sozinho”. O cuidado dos outros, o sucesso que pensa no sucesso dos outros. Sempre o conheci assim.
Nos quatro últimos anos do Seminário, de 1955 a 1959, já não o tive como professor, mas como Prefeito, cargo que ele ocupava pelo menos desde 1953. A preocupação na formação humana dos jovens a seu cuidado continuava ainda mais forte. Isso é mais que evidente nas orientações que escreveu e que intitulou “Memorandum sobre o método pedagógico da Prefeitura”, com a minúcia de características da vida em comum, a atribuição de funções e o assumir de responsabilidades individuais. E embora fosse ele o orientador principal, era dada a devida liberdade aos que ele encarregara de dirigir as inúmeras actividades da Prefeitura. O Memorandum é claro: “dentro destes sectores os encarregados gozam de verdadeira autoridade e o Prefeito não intervém senão por meio deles”. Era-lhes pedido, como a todos os outros: “o sentido da responsabilidade, a capacidade de autodomínio, de decisão e iniciativa, o tacto do convívio social, a possibilidade de mandar e obedecer”.
Na impossibilidade de referir todos estes sectores e actividades, nem agora é ocasião disso, vou cingir-me apenas a um que é o segundo motivo da minha aceitação: “a publicação de um suplemento cultural no diário católico “A União”, intitulado “Pensamento””. Fui contemporâneo da publicação, em que participei ainda em Filosofia, e em que colaborei em diversas fases da edição.
É interessante notar que esta publicação veio de algum modo iniciar um desejo antigo de José Enes e que partilhava com o amigo Cunha Oliveira. Em carta de Dezembro de 1950 confessa-lhe: “começámos outro dia a falar numa revista para o clero e a única dificuldade que se opôs foi o entrave do sr. Bispo por motivos económicos”. Não foi por diante. Esta necessidade de uma publicação era considerada importante, mesmo em distribuição caseira. É curiosa uma referência a isso, numa carta de Janeiro de 1951, em que informa o amigo Cunha Oliveira, ainda em Roma, que devia gostar de “saber que “O Carpinteiro” continua a viver”, e logo acrescenta: “os rapazes cá te esperam”. “O Carpinteiro” era um jornal manuscrito em folhas de papel de desenho A4, escrito e ilustrado pelos alunos da assim chamada Prefeitura dos Médios (alunos de Preparatórios do 3º ao 5º anos e de Filosofia do 6º ao 8º). Era um meio excelente de iniciativas literárias, culturais e de ilustração, e que creio se deveu à iniciativa de Cunha Oliveira e José Enes, ainda alunos na referida Prefeitura. Infelizmente, julgo que a preciosa colecção deve ter desaparecido com as obras após o sismo de 80.
Voltando ao “Pensamento”, foi organizado a partir de cinco secções: Teologia, Filosofia, Actualidades Eclesiásticas, Literatura e Antologia Açoriana: Cada uma tinha à frente um aluno responsável, além de um director (assistido pelo Prefeito) e um redactor.
Os textos mais antigos de José Enes, publicados agora em Açores no Coração, são provenientes do “Pensamento”. Logo no 1º número “Universalidade em Literatura” que marcou profundamente a orientação do suplemento, apesar de ter sido o poema “Adolescente”, de Silva Grelo (pseudónimo de Cunha Oliveira) que sacudiu o ambiente cultural de Angra.
Deve-se, depois, a José Enes, a edição de pequenos livros chamados “Cadernos do Pensamento”, que chegaram a sete, tendo ele publicado no suplemento a crítica literária de dois deles: o 3º, “A Cidade e a Sombra” de Silva Grelo e o 5º, “Miragem do Tempo” de Tomás da Rosa.
Com o nº 46, de 4 de Junho de 1956 terminou o “Pensamento”. Algum tempo antes, no nº 41, José Enes escreve sobre “O movimento cultural em Angra do Heroísmo”, um retrato resumido do meio ambiente angrense, em resposta a Júlio Dangra e à local “Marginália” de 6 de Março de 1956, publicada em “A União”: “Este suplemento apareceu com a pretensão de trazer ao ambiente cultural açoriano um pouco do pensamento filosófico e teológico. Não o conseguiu plenamente. Esta falência deve-se não apenas aos colaboradores senão também ao público leitor”. E depois acrescenta: “Perante esta inapetência filosófica e teológica dos nossos leitores, temos dado relativamente amplo espaço à colaboração literária, procurando através dela despertar interesse pela aporetização filosófica e teológica”. Já nesta altura, acrescenta: “O Instituto Açoriano de Cultura, em breve, começará com a sua revista”.
Na verdade, o IAC, fundado em 23 de Maio de 1955, foi uma laboriosa conquista, e historiá-lo não vem agora ao caso. Em 1956 saía a revista “Atlântida” que trouxe ao meio açoriano um novo e promissor fôlego. Artigos e recensões, poetas e literatos açorianos em grande difusão, de que os textos deste livro são exemplo.
Tudo se prolongou e cimentou em 1961 com as Semanas de Estudos, outra iniciativa difícil, complexa, uma estratégia muito diplomática de conjugar nos mesmos objectivos outros agentes culturais e políticos dos três distritos açorianos com a finalidade de tomar consciência e reflectir, segundo resume Cunha Oliveira no seu Testemunho escrito, “com o que éramos e tínhamos em termos de desenvolvimento económico e social e de serviço à “Pessoa Humana” e comprometer-se “com o que nos faltava”.
Entre 1961 e 1966 foram 5 as Semanas de Estudos que vieram a acabar por pressões políticas e censórias. Sei da dificuldade e complexidade da organização, pois participei activamente no secretariado de uma delas.
Desculpem este desvio pelas Semanas de Estudos, mas foi propositado. Podem não ter que ver directamente com o conteúdo do livro, mas tem, e profundamente, com o título dele: Açores no Coração. É por demais evidente, que toda esta vida de iniciativas, de escritos, de reflexões, de empenhamento pelas ilhas, seu desenvolvimento e progresso a todos os níveis, só pode porvir do coração. Foi feliz a escolha do título, sugerido pelo Onésimo e aceite pela Fernanda Enes.
Quanto ao conteúdo do livro, todos os textos, desde a especial abordagem da obra de Gaspar Frutuoso, importante para a história açoriana, às reflexões críticas sobre poetas açorianos, marcadas pela formação filosófica, análise literária e sentido poético do autor, são duma qualidade e profundidade invulgares. Não me arriscaria a criticá-los. Aliás, sobre eles, o prefácio de Leonor Simas-Almeida e do Onésimo Almeida, acrescido da Nota Introdutória da Fernanda Enes são excelentes e permitem uma visão mais abrangente e uma leitura comprometida.
Julgo, para terminar, que é um livro absolutamente necessário (fujo de falar em obrigatório) para quem se dedica aos estudos literários e à história cultural açoriana. São um exemplo, do que José Enes confessa ser e fazer no texto dedicado ao Eduíno de Jesus a respeito da formação filosófica: “não sabia ensiná-la sem a viver, nem vivê-la sem partilhá-la com os intelectuais da sociedade a que eu pertencia”. Fê-lo com a filosofia como o fez com toda a vida. Este Açores no Coração são uma pequena parte dessa partilha.
Casa dos Açores de Lisboa, 25 de Setembro de 2025
Artur Goulart de Melo Borges
Texto lido pelo autor, Artur Goulart, na apresentação do livro.
