Charneca, Lezíria e Bairro num olhar de mulher por José do Carmo Francisco

Julgo que sei, não tenho a certeza, mas terás nascido no Olival de Ourém nos limites do distrito de Santarém e do velho conceito do Ribatejo de 1936 – Charneca, Lezíria e Bairro. No teu olhar vê-se, pressente-se, percebe-se, a fronteira entre a aridez da Charneca, a abundância da Lezíria e a variedade do Bairro. O teu olhar convida a todas as viagens: primeiro os almocreves e depois as mulheres como a tia Luzia que vendiam as sardinhas da Vieira de Leiria pelas terras ali ao pé e pelos Casais.

Ela ia pelo Souto, pelos Cunqueiros, por Carvide, por Monte Real e pelas Várzeas antes dos Casais que para ela eram os seus Casais. Dizia-se ao tempo «Praia sem almocreves é praia de fome!» e eles arrancavam logo que feitas as contas com as suas galeras e com os seus animais bem estimados: Arnal, Maceira, Porto Carro, Albergaria-dos-Doze, Ferreira do Zêzere, Torres Novas, Figueiró. Ansião, Condeixa, Sertã, Tomar. Outros iam por Monte Redondo, Bajouca, Serra do Porto de Urso, Amor, Moita da Roda, Riba de Aire, Cegodim, Barreiros e Marinha Grande.

No Casais, a tia Luzia deparava-se com uma freguesa sem dinheiro: aceitava uma quarta de milho para pagar o peixe ou então o fiado ia para um livro preto onde se escriturava tudo a lápis. Preferia assim a trazer de novo o peixe na canastra para a Vieira de Leiria. Vejo no teu olhar a duplicidade que só as crianças transportam em si porque só para elas é igual o preço dos beijos e das lágrimas.

Oiço os beijos de 1977 na areia da Praia da Vieira, as crianças da família, a confiança, o espaço apaziguado. Ao mesmo tempo, oiço lágrimas depois do naufrágio do «Salsinha», os dois últimos mortos, o Boga e o Zé Ramusga, treze cruzes toscas e iguais, no cemitério da Vieira, onde os vendavais do Inverno vão destruir essas memórias de madeira, mas nunca a memória sentimental do desastre.       

 Foto de Artur Pastor

José do Carmo Francisco, escritor (da série Crónicas do Tejo, 87)

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