Do Atlântico ao Mundo: As Análises Literárias de Vamberto Freitas

Não há uma única ideia ou um ideal que reste aos Estados Unidos. O melhor que temos como heróis nacionais são uns poucos aviadores imprudentes.

Edmund Wilson, The Higher Jazz

Alguns literatos lusos, poucos, já conhecem parte da obra Edmund Wilson (1895-1972), mesmo que nunca tenha sido traduzida no nosso país, mas pelo menos uma limitada mostra dos seus famosos livros foi publicada no Brasil: Rumo à Estação da Finlândia11 Ensaios e O Castelo de Axel, este último um livro que introduziu os norte-americanos ao modernismo literário europeu e as implicações para a própria literatura no seu país a partir dos anos 20. Também já referi noutra parte que até mesmo um elitista e tradicionalista como Harold Bloom, no seu muito citado Cânone Ocidental, considerava-o o crítico americano maior de quase todo o século passado. Era admirado imensamente por outros escritores de ficção e ensaios, como Gore Vidal e Joan Didion. por exemplo. Wilson nunca resistiu a tentar a sua sorte e talento noutros géneros: teatro, poesia e ficção. Não atingiu nunca o prestígio da sua obra crítica, sendo hoje mais biografado do que os famosos escritores sobre os quais começou a escrever cedo, e incluíam os seus amigos Ernest Hemingway, John Dos Passos, T. S. Eliot e F. Scott Fitzgerald, este seu colega e grande amigo na Universidade de Princenton, não resistindo a uma inveja inconsequente aquando da saída do romance O Grande Gatsby. Só que quando Fitzgerald faleceu precocemente aos 44 anos de idade em 1940, Wilson exerceria toda a sua generosidade intelectual e humana. Tratou de imediato de rever o romance póstumo de 1941, The Last Tycoon (publicado no nosso país), que tem como referência a vida de Hollywood e algumas das suas mais reconhecidas figuras do cinema da época. De seguida, reuniu em The Crack-Up (1945), os escritos soltos que Fitzgerald tinha deixado sobre os anos de grande sucesso até à sua decadência total, contendo ainda testemunhos de autores de grande repercussão literária, como Gertrude Stein e Edith Wharton, assim como os já mencionados aqui T. S. Eliot e John Dos Passos. Em forma de romance, Wilson publicaria I Thought of Daisy (1929), e Memoirs Of Hecate County (1946), este de imediato condenado em tribunal pelo que entenderam no país da liberdade conter demasiada “pornografia”. Tinha sido o seu livro de grandes vendas, o que lhe facilitou um certo desafogo financeiro durante um curto tempo. É um romance fragmentado em diversas estórias, quase todas elas baseadas em figuras reais mas disfarçadas com nomes ficcionais, e só regressaria às livrarias em 1959.

No início dos anos 40, escreveria The Higher Jazz, que deixou incompleto, mas com notas à margem, o que permitiu ao seu editor juntar o puzzle de palavras e continuidade de frases e diálogos. Sairia em 1998, embrulhado em notas de diversa natureza e um longo prefácio explicativo das circunstâncias em que foi escrito e abandonado, levando o leitor à total compreensão da sua prosa linear e claríssima. Wilson já se tinha virado para outras literaturas e temas, especialmente de minorias de várias nações, inclusive de nativo-americanos, em Apologies To The Iroquois.

Entendamos: The Higher Jazz não é um romance superior, mas li-o como quem lê um ensaio genial de Edmund Wilson. Como já li praticamente toda a sua vastíssima obra e quase tudo que sobre ele foi publicado em forma de livro ou ensaio, escrevo aqui com toda a segurança e boa memória. Wilson viveu os seus primeiros anos em Nova Iorque e escreveu toda a vida para algumas das melhores revistas, começando pela Vanity FairNew Yorker e The New York Review of Books. Os seus três romances têm Nova Iorque e arredores como fundo, mas depressa deixou a cidade para ir viver na pequena cidade de Wellfleet, em Cape Cod, rodeado de outros escritores e artistas noutras áreas, e de luso-americanos, passando meses numa outra velha casa no campo da parte norte do estado de Nova Iorque, que ele chamava the old stone house/a velha casa de pedra, e onde eventualmente faleceria na sua solidão, pois sua quarta esposa recusava quase sempre ir para esse isolamento entre vilas menores e rodeado de terras agro-pecuárias. O significado de The Higher Jazz tem de ser explicado aqui porque a tradução na nossa língua tornar-se-ia ambígua. Situado nos anos 20 em Manhattan, é da vida boémia e sem rumo nos clubes nocturnos entre pseudo-intelectuais e artistas-outros, em que o álcool era a medicina da noite. O título do livro, no entanto, é polissémico: refere-se ao movimento que existia em que compositores modernistas da música clássica, com destaque para Ígor Stravinsky e Aaron Copland, tentavam, com maior ou menor sucesso, incorporar o jazz que ia surgindo nas suas próprias composições.

Por outro lado, o mesmo título poderá significar a vida corrida extremada na grande cidade, quase sempre sem sentido ou então de alegria falsa. Pelo meio temos diversas personagens, ora em casamentos falhados, ora andando de namorado e namorada com frequência quando a vida de cama e outras diferenças interrompiam uma espécie de romantismo mais fabricado do que verdadeiramente vivido. Para Wilson, que era originário de uma certa aristocracia já meio desfeita de Nova Jersey, Nova Iorque era a cidade da grande finança, de espectáculos burlescos e da Broadway. Manteve-se uma espécie de neo-marxista até ao fim, e um dos seus mais lidos livros é precisamente uma biografia de Lenine e da admiração que Wilson mantinha pela experiência de um regime radical e sem par na História humana, tendo viajado durante meses na União Soviética em 1935. A política americana era para ele repugnante, a doméstica e a internacional, e escreveria um livro a explicar as suas razões quando deixou de pagar impostos porque não queria apoiar a guerra no Vietname nem alimentar a chamada corrida louca aos armamentos de destruição maciça. Pagaria caro por isso, mas nunca pediu desculpa, como pediu aos nativo-americanos pelo tratamento que recebiam tanto do estado de Nova Iorque como do governo federal. Escreveu The Higher Jazz no começo da sua fúria, aplaudiu a queda da bolsa em 1929, afirmando “antes eles do que nós”. Entrou com outros escritores estradas dentro do interior da América para testemunhar a miséria do povo e apoiar as suas greves em curso, que resultaria num dos seus mais dramáticos livros de reportagens, The American Earthquake: A Documentry Of The Twenties and Thirties (1959), no auge da Guerra Fria e da perseguição internamente desencadeada contra todos os dissidentes de esquerda, a época de um certo fascismo à moda americana. Reconhecemos nas páginas de The Higher Jazz alguns dos nomes, com a famosa e grande, mas corrosiva crítica de Dorothy Parker, entre outras alusões a lugares da intimidade do próprio autor-narrador, que toma o nome de Fritz.

“Acabei de dizer ao Frink, que me parecia um cão raivoso – diz uma personagem sobre outra – que o que este país precisa é de mais crédito financeiro. Poderemos produzir aqui mesmo nos Estados Unidos tudo que qualquer pessoa deseja – temos maiores recursos naturais do que qualquer outro país menos os da Rússia, e eles ainda não controlaram os seus. Porquê que é que o povo não desfruta disso? Porquê é que não podem gozar do que têm? Nem sequer têm o suficiente para comer – nem sequer têm roupas e uma casa – alguns deles não têm nada do que necessitam durante uma época supostamente próspera. A razão? A razão é simplesmente que os barões dos caminhos de ferro e das grandes corporações podem obter enormes empréstimos dos bancos a qualquer dia, e o povo não consegue o dinheiro para comprar os produtos que eles próprios estão a plantar para outros.”

The Higher Jazz, uma vez mais, poderá não ser um dos grandes romances americanos, mas para quem conhece a obra crítica de Edmund Wilson (e mesmo para os que não a conhecem) lê-lo é com o maior prazer. É como que um ensaio com diálogos pelo meio, um outro retrato da América que muitos gostariam de esquecer ou ignorar que nunca existiu, tal como existe hoje para quem mantém um mínimo de equilíbrio intelectual e consciência social e histórica.

Vamberto Freitas, crítico literário.

Edmund Wilson, The Higher Jazz, Iowa City: University of Iowa Press, 1998. Todas as traduções aqui são da responsabilidade de Vamberto Freitas. Publicado na coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 20 de dezembro de 2019.

A Bruma Publications através desta plataforma de artes e letras irá publicar, semanalmente, um segmento dedicado a revisitarmos textos de Vamberto Freitas, crítico literário dos Açores, que continua a dedicar-se à literatura. Ao longo de quatro décadas, ninguém nos Açores e na diáspora tem tido um papel predominante como Vamberto Freitas. Os ensiaos aqui publicados encontram-se nas dezenas de livros que já publicou e uma revisitação é importante, porque é a literatura é sempre atual, e os ensaios literários de Vamberto Freitas são verdadeiras obras de arte.

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