Do Atlântico, o Canto e o Silêncio-O Lugar e a Voz de um corpo-poema que se eleva por Henrique Levy

«Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio,

e eu moverei o mundo.»

Arquimedes

Dos Açores, entre o voo das aves e o murmúrio eterno do mar, encontro a poesia de Licínia Quitério (Quitério) como ilha firme. Uma poesia feita de silêncio, de terra e de mares interiores. A sua poesia nasceu longe desta minha permanente linha líquida, no entanto, atravessa oceanos, como mãe das palavras que sabem guardar mistérios, tecendo memórias com o fio que nos prende à argila do humano e convoca a sabedoria antiga da Mãe Terra e do ritmo de um convite ético e espiritual.

A poética de Quitério ensina-nos como o pulsar da terra reconhece o compasso do humano e do divino. Quitério veste os poemas de corpo e de um tempo feito memória dos lugares alados da infância cantados como microcosmos na construção de jardins e cidades em miniatura.

Trata-se de uma poesia que nos entrega um mundo visto de dentro, por um olhar jovem, inovador, cuidadoso, com absoluta percepção de que tudo é efémero e transitório.

A poetisa recupera objetos e lugares que resguarda em oráculos, fazendo-nos sentir que toda a palavra é herança e promessa. É uma poesia que, ao cantar a viagem humana, estende raízes no silêncio, na dança e no sonho. Onde cada verso é prece que não reafirma fé, mas transporta a possibilidade do gesto salvífico nos chegar através do outro, de objetos, de lugares de memória onde se volta com a sensibilidade necessária para respirar o mundo sem o dilacerar.

São poemas provenientes do saber cristão e comunitário a encontrar força no cuidado e na urgência de quem envolve de fraternidade o pão partilhado.

Como humanista, sinto na poesia de Quitério uma cristologia do quotidiano, onde o oculto se desvela em pequenos gestos. Como feminista, reconheço na voz poética de Quitério um respirar coletivo que atravessa figuras, mitos e lugares, sem sedimentar papéis e inventar presenças.

É uma poesia rara, porque é escrita para respirar em conjunto.

Regresso ao meu Atlântico.

Debruçado sobre a poesia de Quitério, como sinal de partilha de um tempo lento, observo e ouço uma voz poética que não se impõe, mas que permanece e nos ensina a escutar o mundo do outro, a rasgar o sagrado que habita cada fio da Natureza, através da respiração do poema, onde a autora não canta apenas a infância e silêncios, mas, essencialmente, evoca o que somos, no entreolhar entre o verso e o dogmático abismo da condição humana. Tens de sentir o respirar da terra, não há outra evidência sobre a vida. Esta exigência de sentir reúne o humano ao mundo, exige vigilância ética de um toque atento a validar a existência do poema em diálogo com o tempo presente e o ethos coletivo.

A força da poesia de Quitério reside no convite para que no mundo se ergam as palavras que se podem transformar em corpo. Este convite místico existe sem admitir recuos. É uma presença que se impõe no tempo e na fração do instante do gesto solidário que nos convoca a conhecer o outro.

O campo do poema surge no limiar entre o avançar e recuar, entre a fala e o silêncio.

Amanhecer e anoitecer não nos são apresentados como verbos, mas rituais que nos visitam com assombro. É aí que a poesia se faz revelação. Sem retórica busca na memória a fluidez de um quotidiano doméstico. Indomesticável.

Eram mulheres à volta duma mesa.

Teciam conversas com linhas da voz.

Os olhos desviavam insectos verdes

a zumbirem memórias de outras mesas.

Deitavam cartas a convocar futuros.

No fruteiro, a natureza quase morta.

No retrato, tinham pupilas vermelhas.

Como as feras no escuro.

In, Memória, Silêncio e Água

As mesas femininas tornam-se altares de convivência. As falas são fios tecidos, as pupilas, feras noturnas, fortes, vulneráveis, no limiar das coisas visíveis. Nomear torna-se um ato feminino de salvação, profundamente humanista, onde a memória se quer crónica de angústia compartilhada e a poesia testemunho da atenção devotada ao outro, construindo na ética da recordação, o humanismo, em tempos que tentam apagá-lo.

Na minha condição de ilhéu, a poesia de Quitério é vindo-mar, é urgência de silêncio, é palavra que se fragmenta, como o mar contra a orla da ilha, e, por isso mesmo, se torna comunidade e partilha. Como poeta, atrevo-me a afirmar que são raras as vozes contemporâneas, cuja poesia nos oferece tanto de visível como de invisível, de ténue e duradouro.

Quitério tece uma poesia com versos que são ponte entre o invisível e o tecido social. Há na sua voz a sabedoria do cuidado, o impulso da partilha feminina da escuta e, sobretudo, o humanismo de permanecer empática na atenção ao mundo e aos outros.

Ao leitor basta reconhecer que a poesia de Quitério é um farol que ilumina e perscruta, em sussurro, a coragem de quem não quer nem pode permanecer na sombra.

Casa da Mediana

29 de agosto de 2025

Henrique Levy, poeta com uma vasta obra publicada em vários géneros literários.

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