
A N9na Poesia é uma pequena, mas colossal editora de poesia, sedeada nos Açores. Conta com vozes que importa escutar, caso de Daniel Gonçalves, de Natividade Ribeiro, de Alexandre Borges, de João Pedro Porto, de Ângela de Almeida, de Eduíno de Jesus, para lá da ressuscitada jorgense, Marianna Belmira de Andrade. É fruto da teimosia e do refinado bom gosto de Henrique Levy, seu editor, que é também ele poeta de inegável mérito e talento. A N9na Poesia é, sem dúvida, excelente notícia, pois que a chancela que cria centro no que habitualmente se considera periferia. E já tem uns aninhos, mais de uma dúzia de títulos publicados, persistindo em fazer sua a missão de contrariar os fatalismos das geografias, contrabalançando-se-lhes a força da imaginação. Há algo de magnificamente quixotesco na vocação eleita, que não pode deixar de nos causar assombro, maravilhamento e empatia, logo e subsequentemente, simpatia e solidariedade.
No entanto, este texto não é um elogio à editora, que o merece, mas sim constitui-se como uma sugestão de leitura, no doce languidescer doestio, nestes dias mais compridos, que julgo de proveito. Por isso mesmo trago-vos a terreiro “Cânone silábico. Uma canção de amor”, admirável livro de António de Nêveda, com ocarimbo de inquestionável qualidade da N9na Poesia. Primeiramente, há que assumir que não é um livro de poemas, tão pouco um livro de poesia. É, antes, um singular poema que assume a forma de incunábulo evocativo, bem espesso, de centenas de páginas. O longo poema é um todo harmonioso. O labor insano do autor, que ao longo de anos persistiu, trabalhando sem renunciar, habilmente capacitado para manter o poema coerente do início ao fim, com unidade de linguagem, clareza e forma, revela um artista de fino recorte, com o engenho do mais talentoso ourives de filigrana, pleno de recursos aparentemente infindáveis, mas também um criador de invejável pulmão, ser humano capaz de uma lealdade e retidão face ao compromisso por si livremente assumido, que faz corar as contingentes fidelidades hodiernas e nos poderia levar a questionar a real solidez de alguns propagandeados artistas contemporâneos.
Porém, não é apenas a dimensão do trabalho, que é absolutamente impressionante, que justifica plenamente a sua leitura. Esse labor é monumental, mas não é menos a escrita em si. “Cânone” é um escrito sagrado (perdoe-se-me a heterodoxia), porque inspirado. É uma imensa oração, ao estilo das odes horacianas. Expressa pensamentos de sentido ético, sentimentos de todos os tempos, de todos os seres humanos. Pelo singular se torna universal. Convida-nos, para lá do contingente, a ter a ousadia e a disciplina de vivenciar a vida plena que está ao nosso alcance, aquela que se despe de luxos e adornos, a que se religa à natureza pelo sossegamento, o locus aemenus – essa promessa de se ser feliz através do prazer extraído das coisas simples da vida. Há, para mim, evidentes ressonâncias de Eugénio de Andrade, tanto no deísmo, como no simbolismo, bem como no partilharem de uma profunda heroicidade, procurando aceitar a vida como ela é e não como a podemos imaginar. Ambos são salmódicos, mas, em verdade, não é justo sequer compará-los.
O uso de diversas línguas, o recurso às outras artes, como a música e a pintura, sem preconceitos ou competição, apela à unidade, à reconstituição do amniótico universal, anterior às condições de cisão que nos opõem, convertem em adversários, ou estranhos. No fundo, àqueles a quem decidimos despir e deixar de reconhecer a intrínseca dignidade humana. Nêveda seduz-nos e enleva-nos, para com ele seguirmos para a Terra de Nimrod, antes da construção da Torre de Babel, onde todos falávamos uma mesma língua e, por isso mesmo, partilhando equivalente dimensão existencial, nos ouvíamos e entediámos. Mas não se confunda este convite com inocência, pois ela não mora no autor, que é seguramente para maiores de 21 anos. Há sim a segurança, que advém da maturidade da vida vivida e nos transmite lúcida mensagem. É que independentemente das vontades particulares, num mundo que partilhamos, teremos de aprender a conviver uns com os outros. Somos todos igualmente inquilinos da vida. Convido-vos, pois, a descobri-lo.
In Diário Insular, José Lourenço-director.
https://www.letraslavadas.pt/canone-silabico-uma-cancao-de-amor/

ANTÓNIO DE NÉVADA
Nascido em Lisboa no ano de 1967, no sétimo dia do mês de setembro, viveu toda a infância e a adolescência em Cabo Verde, Mindelo, a cidade do Monte-Cara, a sua cidade. Em 1985 termina os estudos liceais e parte para Portugal para estudar Engenharia na Universidade de Coimbra, cidade onde viveu década e meia, e onde a Aurora lhe deu um filho e uma filha, o Tiago e a Sara..
De entre várias actividades culturais no contexto da vida académica fez um curso de Teatro Experimental e colaborou em vários eventos de teatro universitário pelo CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), tanto na organização e enquanto actor, como no âmbito da carpintaria teatral (cenografia, luminotecnia e sonoplastia). Nessa fase, de 1987 a 1992, foi também colaborador assíduo do DNJovem (suplemento literário do jornal Diário de Notícias).
Regressou à sua condição islenha e vive nos Açores há 23 anos, em Angra do Heroísmo. Nestas ilhas da Macaronésia mais a norte, com outros poetas e agentes culturais tem liderado vários projetos e eventos de cariz literário, e também como curador.
É autor dos livros de poesia:
Acto Primeiro ou o Desígnio das Paixões, Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, Praia (1993);
Esteira Cheia ou o Abismo das Coisas, Angelus Novus, Coimbra (2000).
Tem colaboração poética dispersa em vários periódicos literários, nomeadamente, na ArtiLetra, na Fragmentos, na Pré-Textos, na Andarllhagem, na vai-se Fazendo, na Atlântida, na 9Bairros, na Txon-poesia.
Publicou ensaios literários abordando a arte poética e a dialética da escrita:
Carta ao tio Djom [i.e., João Vário] à volta de uma consideração crítica do poeta Mário Fonseca em torno de Acto Primeiro (Artiletra, Praia, 1997);
Uma Leitura Possível: Os Trabalhos e os Dias (Atlântida, revista do Instituto Açoriano de Cultura – IAC, Angra do Heroísmo, 2008), texto apresentado previamente no Colóquio Internacional – Centenário da Claridade, 2007, Praia, Cabo Verde;
Extensão Ôntica do Poeta (Atlântida, IAC, Angra do Heroísmo, 2016);
Poesia CV – Hoje, sec. XXI?, Antologia de Poesia Caboverdiana, seleção, organização e nota breve de António de Névada (Atlântida, IAC, Angra do Heroísmo, 2018).
A sua poesia está presente em várias antologias, nomeadamente, e nas mais recentes: Destino de Bai, organizado por Francisco Fontes (2008, Coimbra); Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea, organizada por Ricardo Riso (Revista África e Africanidades – ano IV – n.13, 2011, Rio de Janeiro, Brasil); Cabo Verde 100 Poemas Escolhidos, organizadoras Erica Antunes Pereira, Maria de Fátima Fernandes e Simone Caputo Gomes (Pedro Cardoso Livraria, Praia, 2016); Dez Poetas de Cabo Verde, organização de Rui Guilherme Silva (DiVersos – poesis e tradução, 2017, Porto).
Cânone Silábico – uma canção de amor é o seu primeiro livro editado nos Açores, com chancela da editora N9na Poesia.
