
“Nada nesta vida é universalmente aplicável ao género humano.” (pág. 23)
Com mais de 30 livros publicados (romance, conto, ensaio, antologia, poesia), João de Melo soma e segue. E, com invulgar desenvoltura e prodigiosa imaginação criadora, continua em busca do que há de insondável na alma humana.
Desligado de tertúlias literárias, o seu ofício nunca foi o de fazer anatomia à literatura, pois que nunca pertenceu à “confraria dos anatomopatologistas das nossas Faculdades de Letras” (olá, Vasco Pereira da Costa!), isto é, ele nunca cedeu às modas do indizível e do desconstrutivismo, nunca embarcou em semióticas da diegese do texto, e continua a dizer não às escritas barrocas e gongóricas…
Com grande pontaria verbal, a escrita de João de Melo é sempre um lugar de confronto, ou seja, de denúncia às verdades ilusórias e de renúncia às máscaras de um quotidiano alienante. E, em toda a sua obra, há um discurso literário que lança olhares sobre os mitos do passado recente, do presente incerto e do futuro de bruma, sempre com uma linha em comum: questionação (crítica, céptica e não poucas vezes perversa) do real.
O seu mais recente livro, A Nuvem no Olhar (Publicações Dom Quixote, 2025), coletânea de 10 contos, é um bom exemplo do que acima ficou referido.
Sendo o conto a arte de sugerir, ele comporta um mecanismo de condensação de experiências vividas e sonhadas e é, por isso mesmo, plurissignificativo. Ora, uma das grandes linhas do processo criativo de João de Melo reside precisamente em testemunhar uma consciência coletiva através de uma consciência individual, situando-se a sua ficção entre uma dimensão de vida vivida e uma dimensão de vida recriada – prova evidente de que o ofício de escrever é indissociável do ofício de viver.
Caracterizadas por uma forte concentração do tempo e do espaço, as narrativas de A Nuvem no Olhar têm tanto de apreensão de um mundo real como de construção de um mundo fictício. E, a servi-las, há uma técnica narrativa hábil e eficiente, e uma escrita acutilante e musculada. E aqui reitero o que há meio século anos venho referindo: João de Melo não precisa de escrever poesia porque esta já está contida na sua prosa.
A literatura será sempre uma procura do sentido da vida e uma interrogação do homem no mundo. Por isso este escritor escreve contra o esquecimento. Nas histórias contidas em A Nuvem no Olhar está sempre presente o contencioso social. Daí a implacável crítica que o autor tece a todos os poderes instituídos: do social ao cultural; do político ao religioso; do judicial ao militar. “Não se faz boa literatura com bons sentimentos”, diria André Gide se fosse para aqui chamado…
Resultado de um processo de cruzamento entre a experiência do real e a reelaboração desse mesmo real, João de Melo lança, nestes contos, olhares irónicos e sarcásticos a um certo mal-estar português: denuncia as novas mitologias do quotidiano; carrega nos traços caricaturais de alguns políticos e de uma certa intelligentsia lusa; lembra África e a memória (magoada) da guerra, abordando o fim do ciclo colonial africano e o evoluir do processo português posterior à descolonização; e, da forma mais terna e poética, conta-nos a viagem de um casal, em lua de mel, pelas 9 ilhas dos Açores… (Como é possível caber tanto mundo em tão pouca geografia?).
A Nuvem no Olhar é um livro com grande poder evocativo e boa capacidade expressiva. Saudemos a humaníssima voz do seu autor que, escrevendo do Lumiar para o Mundo, continua a engrandecer e a dar luzimento à literatura portuguesa.
Victor Rui Dores, escritor
