Daqui e dali, agora e antes por Paula de Sousa Lima

Viagem iniciática – Moçambique

Há viagens que são revoluções, que nos mudam a vida para sempre, que nos indicam trajetos para além do seu próprio trajeto. Assim foi a minha viagem até terras africanas, no longínquo ano de 1974, esse ano de todas as mudanças.

Partimos da ilha os quatro, pois fomos quatro durante muito tempo, o tempo em que a minha vida fazia sentido e nada a podia conturbar. Saímos os quatro – pai, mãe, irmã mais nova e eu – da ilha porque a Pátria mandou que o pai a fosse defender, manter a integridade de um país agonizante sem que a maioria dos seus habitantes soubesse dessa agonia. O pai sabê-lo-ia, mas era preciso alimentar a família, que a herança estava longe e, mesmo que próxima estivesse, não seria o pai um proprietário a viver de rendimentos, tal o avô, pois os tempos eram outros. Partimos, portanto, da ilha sem ninguém questionar fosse o que fosse, fizemo-nos ao ar, que, sendo os tempos outros, cruzava-se o ar, já não os mares indómitos. Partimos agasalhadas, que janeiro é tempo de frio, levando nas malas roupas levezinhas, que África é terra de calor.

Dos Açores a Lisboa, de Lisboa a Luanda, de Luanda à Beira, da Beira a Nampula, de Nampula a Nova Freixo, cidade no norte de Moçambique que poucos conhecerão, foram muitas horas, as últimas das quais num meio de transporte a que chamavam automotora, espécie de comboio aparentando ser antepassado dos comboios. Foi desconfortável, por certo, isto para o pai e para a mãe, pois nós, eu e a minha irmã, tínhamos a pujança dos poucos anos, quando nada cansa, e o que é novo causa alarme em todos os sentidos, tal na alma. Chegar a África é deixar para trás sons e odores e sabores e cores e sensações térmicas conhecidos, é entrar num universo onde tudo é novo e excecional, onde tudo tem a excelência da vastidão e duma magia que paira na calidez dos ares.

Nova Freixo era uma cidadezinha pequena, cercada de mato por todos os lados, como uma ilha de mar, e dela estava o mar muito alongado. Nós, gente das ilhas, imergimos de tal modo no sortilégio da terra africana, nos pores-de-sol vastíssimos e sempre renovados de beleza indizível, na imensidão da terra odorífera, que nem sentíamos as naturais saudades do mar. Recordo comovidamente, mesmo passados cinquenta anos, a largueza dos campos de algodão, de um lado e doutro da estrada de terra batida por onde o jipe ia da cidade à Base Aérea. Não percorremos esse caminho vezes suficientes para o olhar como coisa natural, conquanto muitas tenham sido as vezes que o jipe percorreu tal caminho. A brancura do algodão, a irromper das suas cápsulas, é coisa que ficou sempre connosco. A mãe apanhou uns quantos ramos da planta para mostrar aos seus alunos quando regressássemos. Não tínhamos, porém, pressa alguma de regressar. Teve-a a mãe, passados uns meses, quando se fez abril.

Recordo o colégio religioso, as irmãs de hábitos leves; os meus colegas, uns de cor pálida, outros mais escuros do que eu; recordo as lojas indianas, o seu aroma vigoroso e inconfundível; recordo as tardes na varanda, quando a mãe deixava o croché esquecido para espraiar os olhos pelo mato e o pôr-do-sol; recordo o passeio à missão, quando o jipe quase capotou, e nós avançámos na picada sob uma noite plena de sons encantatórios, diferentes de quantos eu já ouvira e de quantos viria a ouvir (a mãe teve medo – e mais viria a ter); recordo o João, mainato que limpava a casa e lavava a roupa muito melhor do que as criadas, dizia a mãe, recordo-o a falar Macua, língua que quis aprender, mas o tempo escasseou; recordo o Sol a banhar-me a pele à beira da piscina do Clube de Oficiais, única piscina daquelas paragens; recordo o sabor das papaias, que não conhecia, e os maracujás em latadas, maiores e de sabor mais intenso do que os da ilha; recordo a missa de domingo, onde os rituais eram acompanhados de batuques.

E recordo a mudança. Mudou a Pátria, que se havia de despojar de quantas terras tinha usurpado e ser mais justa; mudou a disposição da mãe, que conheceu o medo a cingir-lhe a pele; mudou o meu corpo, ficando em Nova Freixo a casca de menina para chegar à ilha, já era julho, com contornos de mulher.

Nunca mais voltei a África, todos os dias desejo fazê-lo. Há, porém, terras que, após serem tocadas uma vez, permanecem connosco a vida inteira, nunca se nos descolam dos sentidos. E os meus guardam as cores, os odores, os sabores, o toque da calidez dos ares, o som dos batuques na igreja e da fala dos pássaros na noite em que o jipe quase capotou, e a imensidade da noite africana fez com que a minha alma se ampliasse tanto.

Paula de Sousa Lima, escritora vive na ilha de São Miguel, Açores

Agradecemos à escritora Paula de Sousa Lima por autorizar que estes deliciosos textos sejam publicados nesta plataforma de artes e letras da Bruma Publications, parte do instituto PBBI da Universidade do Estado da Califórnia em Fresno. Estes textos serão publicados nesta plataforma em portugês, e posteriormente republicados também aqui em tradução.

Textos originalmente publicados no jornal Ilha Maior da Ilha do Pico, Manuel Tomás, director.

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