Cada dia, uma página. Cada página, uma lua. Cada lua, o Álamo.

Breve memória de Álamo Oliveira em duas metades
Álamo Oliveira deixou-nos aos 80 anos. Tinha, portanto, 36 quando nasci, quarentas e tais – a idade que tenho hoje – enquanto crescia. Na minha cabeça juvenil, pensava-o mais velho. Mas esse seria só o meu primeiro engano.
Quando eu era ainda mais pequeno, Álamo era “o” escritor da Terceira, uma espécie de poeta oficial da ilha. Até um miúdo tinha uma ideia histórica de Nemésio, mas Álamo Oliveira era o agora: o homem da poesia e do teatro, do Carnaval e das Sanjoaninas. Se esse miúdo escrevesse, era muito possível que fosse confrontado, mais cedo ou mais tarde, com a magna questão: quereria ele ser “o novo Álamo de Oliveira?”
Mas este miúdo não – e outros que conhecia também. Na nossa cabeça adolescente ignorante e atrevida, Álamo era tudo o que não queríamos ser. Era, achávamos, o poeta das marchas e dos bailinhos, do ocasional poema aprendido na escola, o nome inevitável, a instituição obrigatória, afigurava-se-nos – por mais estranho que hoje compreenda que esta ideia provavelmente fosse ao próprio – como a situação, o sistema, a corporização de uma certa ideia de cultura pré-estabelecida (porque a que lá estava quando nascemos) contra a qual, como todo o embirrento adolescente com a mania que é esperto, nos queríamos rebelar.
Novos Álamos nós? Claro que não. Absolutamente convictos do nosso arejamento e sofisticação, queríamos ser outra coisa, pretensamente mais urbana, mais moderna, mais qualquer coisa menos Terceira.
Esta é a primeira memória que tenho do Álamo-o-nome. Depois, aos poucos, começou a desvendar-se outro, o real, numa curiosa coincidência com o facto de o observador estar a crescer e a ficar um pouco menos tolo.
A primeira vez que falei com o Álamo-mesmo foi na DRAC, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, de que ele era quadro quando não estava a ser poeta (assunto cultural). Do alto dos meus 16 anos e muito menos centímetros de estatura, já não tenho a certeza do que lá fui fazer – provavelmente, submeter a concurso um original qualquer, dos tais que iam, garantidamente, mudar a história da literatura universal e, quiçá, do lugar de São Carlos. Recordo-me apenas disto: de o Álamo-funcionário receber o que quer que lhe entreguei e perguntar, quando o rapazim estava já de saída, “tu é que és o Alexandre Black, não és?” – momento em que se tornou, não só no Álamo-real, mas também na primeira pessoa, e logo quem, a reconhecer-me pelo ridículo pseudónimo pueril com que, então, assinava, fazendo-me sentir, ao mesmo tempo, uma bizarra mistura de vergonha e conforto.
A partir daí, encontrei-o muitas vezes, quase todas por escrito. Sorte alfabética, calhava-me aparecer a seguir ao Álamo em todas as revistas e antologias em que ia saindo. Aos poucos, comecei a fazer uma coisa curiosa: a lê-lo. A descobrir o escritor, o poeta, o romancista e o dramaturgo para além – mas também – da sua dimensão popular mais celebrada e, sobretudo, da minha ideia mal feita. Fui-lhe ganhando então uma admiração tonta que me fazia tratá-lo agora, porventura, com excessiva deferência. Ainda assim, tive direito a este pedaço do seu célebre humor em directo, no final de um encontro literário em São Miguel em que calhou ficarmos ali os dois à porta do hotel, à espera de qualquer coisa. Fraquíssimo na conversa de circunstância, perguntei: “Então, Álamo? Volta já hoje para a Terceira?”. “Sim”, disse ele assentindo com um movimento de cabeça e voz sumida. “Quer dizer”, acrescentou, “nem é bem para a Terceira; é para o Raminho!”
E assim, conclusão lógica desta muita lenta evolução da primeira metade da memória para a segunda, da ideia para o real, calhou, ao menos, que a última ocasião em que o encontrasse fosse mesmo a melhor. Uma conversa deliciosa em Outubro de 2024 quando, com o Eduardo Bettencourt Pinto, o Pedro Almeida Maia e o Rolf Kemmler, nos escapámos como uns gazeteiros à comitiva oficial dos Colóquios da Lusofonia e fomos enfiar num café no centro de Vila do Porto, a beber umas minis e uns whiskies a meio da tarde, falar de poesia, fotografia e beleza, para concluir, se bem me lembro nas palavras do próprio Álamo, que aquela tinha sido “a melhor mesa do encontro”. (Que ninguém se ofenda. É fenómeno não desconhecido nestas coisas e não desmerece a qualidade das oficiais; apenas festeja a sorte da espontaneidade das outras.)
Álamo Oliveira foi, afinal, de uma espécie raríssima: a do génio ao serviço da comunidade, da sua ilha, da sua freguesia, do seu tempo. Escreveu, pintou e encenou para ele e para os outros. Foi erudito, urbano, sofisticado quando quis e voz das causas sociais da terra e da gente quando entendeu. Foi corajoso e pioneiro, sensível e do mundo, comovente e hilariante. Não se fechou em nenhuma torre de marfim nem rendeu a sentimentos de incompreensão ou excepcionalidade; pôs o seu dom também ao serviço dos dias, da alegria popular, da comunhão.
Portanto, agora, quarentão como ele era quando eu crescia, escritor-a-dias, ensimesmado, enfiado no retiro lisboeta, mal conhecido até na minha rua, penso na pergunta provocatória atirada naquele tempo pelos adultos. Ser o novo Álamo? Quem me dera – não tenho nem metade das qualidades. Um poeta ser em vida – a vida quase toda – voz da sua gente é glória máxima. Coisa de príncipe.
Adeus, poeta. Ficarei envergonhado e triste sempre que vier num índice não depois de ti.
Alexandre Borges, escritor.
