TRINTA LUAS PARA O ÁLAMO

Cada dia, uma página. Cada página, uma lua. Cada lua, o Álamo.

EM MEMÓRIA DE ÁLAMO OLIVEIRA POR JORGE BETTENCOURT

A cultura portuguesa perdeu José Henrique do Álamo Oliveira, uma das suas vozes mais autênticas e incansáveis. Mas esta perda não foi notícia de abertura ou de primeira página na comunicação social anestesiada com a morte de dois futebolistas num desastre de viação ou com o debate parlamentar sobre nacionalidade e imigração. Álamo Oliveira tinha duas características pouco interessantes para o circo comunicacional: era um homem da cultura e nasceu e viveu na periferia territorial de um país avesso a ela.

Falecido em Angra do Heroísmo, a 5 de julho de 2025, aos 80 anos, Álamo Oliveira nasceu na freguesia do Raminho, na ilha Terceira. Fez o Curso de Filosofia no Seminário de Angra e o serviço militar na Guiné-Bissau (1967/69). Ao longo da sua carreira profissional, esteve ligado à cultura, tendo sido catalogador na Biblioteca Pública e Arquivo de Angra e funcionário administrativo em diversos departamentos governamentais, incluindo a Direção Regional da Cultura e, após a aposentação, a Direção Regional das Comunidades. Foi distinguido com a Insígnia Autonómica de Reconhecimento pelo Governo dos Açores e com o grau de Comendador da Ordem do Mérito pela Presidência da República.

Álamo Oliveira dedicou uma parte significativa da sua vida à palavra escrita, deixando uma vasta e diversificada obra literária, que abrange poesia, romance, teatro, conto e ensaio, totalizando cerca de uma centena de títulos. A sua produção está representada em mais de uma dezena de antologias de poesia e ficção narrativa, tanto em Portugal como no estrangeiro, e a sua obra foi traduzida para diversas línguas, incluindo inglês, francês, italiano, espanhol, croata, esloveno e japonês.

Álamo Oliveira é reconhecido como uma das vozes mais autênticas da alma açoriana. Marcou profundamente a cultura açoriana, deixando um legado literário de grande relevância para a identidade do arquipélago, transcendendo fronteiras geográficas e temporais. A escrita de Álamo Oliveira, que muitos consideram ser simultaneamente prosa poética, crítica social, memória insular e psicanálise cultural, é marcada pela lucidez e um profundo amor pela contradição humana. Para além de ser um “artesão de palavras” e um “poeta telúrico”, Álamo Oliveira acreditava genuinamente que a literatura poderia mudar algo no mundo.

Entre as suas obras mais notáveis, destaco:

  • Já Não Gosto de Chocolates (romance): Traduzido e publicado nos Estados Unidos como No Longer Like Chocolates e no Japão. É considerado a narrativa mais emblemática sobre a emigração açoriana para os EUA.
  • Até Hoje (Memórias de Cão) (romance): Galardoado com o prémio Maré Viva da Câmara Municipal do Seixal em 1985.
  • Solidão da Casa do Regalo (teatro): Recebeu o prémio Almeida Garrett em 1999.

Álamo Oliveira abordou a guerra colonial em obras como Até Hoje (Memórias de Cão). Este livro é um exemplo notável de como o tema da guerra colonial pode ser tratado com extremo cuidado. A narrativa de Até Hoje alterna constantemente entre a dura realidade da guerra, vivenciada entre 1967 e 1969, e a saudade da ilha de origem da personagem João. O livro retrata uma violência rara que se agarra profundamente ao leitor, onde a guerra parece desprovida de sentido. O prefácio de Até Hoje menciona que a literatura da guerra colonial começou uma nova aventura no período pós-1974, após o 25 de Abril, quando foi possível libertar a memória de alguns traumas relacionados com a guerra. A Revolução dos Cravos proporcionou uma liberdade que antes não existia, permitindo um salto qualitativo na prosa portuguesa. A obra de Álamo Oliveira, portanto, insere-se nesta nova fase da literatura portuguesa, marcada por uma maior liberdade de expressão e aprofundamento de temas sensíveis.

O romance Já Não Gosto de Chocolates narra a saga da família Silva, originária da ilha Terceira, que vivia em condições de pobreza sob o regime de Salazar. O patriarca, José Silva, decide emigrar para a Califórnia com a sua mulher e filhos, impulsionado pela visão de abundância americana, simbolizada pelos chocolates americanos que nunca provara. Uma vez na América, o nome da família é americanizado para Joe e Mary Sylvia, uma transmutação que reflete também uma mudança na “alma”.

A história desenrola-se principalmente na Califórnia, em Tulare, onde a família Sylvia se esforça para construir uma leitaria (vacaria) próspera. Joe Sylvia, já idoso, viúvo e doente, confinado a um asilo de luxo na Califórnia, relembra a sua vida através de memórias e conversas com a enfermeira mexicana Rosemary. Ele recorda o amor pela mulher e a aparente perda de fé perante a doença fatal, que é depois revertida pela sua força interior.

A família Sylvia é composta ainda por:

  • Lucy e Tony, que com os seus cônjuges Alfredo e Milú, se integraram na sociedade americana. Lucy não conseguiu ser mais do que aquilo que sempre fora, e Tony e Alfredo são caraterizados pela passividade. Milú é retratada como ambiciosa, tendo visto as suas ambições e temperamento gastador despertarem na América. No entanto, o nascimento de um filho deficiente fê-la “descer mais à terra”.
  • Maggie e John, ambos intrépidos e avessos ao “kitsch provinciano” das comunidades portuguesas nos EUA, evitando as reuniões sociais dos emigrantes. Maggie é descrita com vícios degradantes. John, sensível e culto, enfrenta a homossexualidade e o “terror do SIDA”.

A cidade de Tulare, com o seu crescimento e construções “angulares, monótonas, desenxabidas, frias e enevoadas”, espelha a transformação da alma do velho Joe Sylvia. A admiração inicial pelos chocolates americanos, que para ele simbolizavam a abundância, transforma-se em aversão, tornando-se uma metáfora contraditória que expõe a amarga ironia do percurso migratório. Quando os filhos lhe traziam chocolates para o lar, ele vociferava: “Para que quero esta caixa de chocolates? Merda!”.

Já Não Gosto de Chocolates é uma obra profundamente comovente que retrata o sofrimento do emigrante, tanto na terra natal como nos primeiros embates no país de acolhimento. Álamo Oliveira, que tinha familiares emigrados na América do Norte e leccionou lá, conhecia de perto a realidade da emigração. O romance explora a temática da emigração açoriana para a Califórnia, focando-se no choque cultural, no trauma da perda de identidade e na dureza do quotidiano do emigrante.

O autor sublinha que, apesar do aparente sucesso em alcançar o “sonho americano” e as recompensas económicas, o emigrante muitas vezes perde mais do que ganha. O título do romance sintetiza as desilusões trazidas pela “quimera americana”, expressando a ideia de “Já não gosto de chocolates / Já não gosto da América”. A narrativa demonstra que os ganhos materiais não compensam a perda da identidade e o perpétuo sentimento de desajustamento. Joe Sylvia, o protagonista que personifica os muitos milhares de emigrantes portugueses que deixaram as suas aldeias, não tem apenas saudade da sua terra e das pessoas da sua juventude. Tem também saudades de si mesmo – do José Silva que ficou na memória da ilha, do homem que amava chocolates.

A obra de Álamo Oliveira, tal como outras na literatura açoriana, explora a ideia de que “sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”. Os emigrantes, embora se integrem e recriem tradições da sua terra de origem no novo país, como as festas do Espírito Santo, vivem uma instabilidade psicológica interior, como se estivessem “perdidos no meio do mar: nem são totalmente de lá, mas também já não são inteiramente de cá”. Esta representação detalhada e emotiva da experiência migratória faz de Álamo Oliveira uma figura central na literatura e na cultura portuguesa.

Oeiras, 7 de julho de 2025

Eis uma ligação breve coordenada pelo Comandante Jorge Bettencourt num programa da Inteligência Artificial destacando com brevidade a obra de Álamo Oliveira.

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