
Viagens iniciais – Açores
A primeira viagem que fiz foi, certamente, a mais confortável de todas quantas vim a fazer. Ia embalada e aconchegada, nada me podia perturbar, nada me podia ser desagradável, tudo me era benigno, e, acredito, eu era calidamente feliz. Ia, mais pequena do que o dedo mínimo da minha mão, no (nosso) espaço inicial, nesse espaço de que, sem o sabermos, somos todos saudosos. Ia no ventre de minha mãe, jovem mulher cujos muitos acalentados desejos se começavam a realizar. Poucos meses antes, casara ela com o homem dos seus sonhos, que nunca o deixou de ser; agora acompanhava o marido rumo a uma terra distante, feliz só porque ia com ele; mais felizes seriam ambos quando soubessem que eu fizera a viagem com eles, minúscula, silenciosa, embalada, aconchegada.
Não me lembro dessa viagem, lamentavelmente. Sei que saía da minha ilha para ir nascer a um lugar distante, talvez inóspito, um lugar que não era o meu, que não era o dos meus maiores. Minha mãe assim também ia: apreensiva por deixar a sua ilha, por se afastar do seu chão e do seu mar. Ia, todavia, confiante no homem que amava e que a amava, portanto ia feliz. Nasci nesse lugar que não era rodeado de mar por todos os lados, que não tinha odor a maresia, cujo firmamento não se volvia bruma sobre a terra, cujas gentes falavam de forma diferente da que falava minha mãe. Creio que, ao nascer, já trazia a saudade que habitava na alma de minha mãe, também na de meu pai.
Vivi nesse lugar até completar seis anos de idade, tempo suficiente para a ele me afazer, mesmo para cuidar que aquele era o meu espaço. Se bem perscrutasse os olhos de meus pais, saberia, decerto, que não, que aquele não era o nosso lugar, que o nosso lugar estava para além da orla do mar, e era um espaço onde o mar se fazia mais amplo. Foram, pois, necessários seis anos para eu chegar à minha terra, à terra de onde partira mais pequena do o dedo mínimo da minha mão, e à qual regressaria com a expetativa desconhecida de quem regressa sem o saber.
A segunda viagem que fiz foi a de regresso à minha terra. Viajei com meus pais e minha irmã, segunda filha do casal, a bordo de um barco cujo nome não recordo. Recordo, isso sim, que vestíamos, eu e minha irmã, blusinhas floridas e saias cor-de-rosa forte, com suspensórios e fivelas, quando o barco atracou na doca da ilha prometida. Creio, ou imagino, que o meu deslumbramento ante aquele mar foi o mesmo que ainda agora me toma quando nele mergulho o corpo que cresceu, que amadureceu, que vai envelhecendo. Voltar à ilha é, agora o vou pensando, como imergir renovadamente naquele lugar inicial onde estava, minúscula, silenciosa, embalada, aconchegada, quando fiz a primeira de todas quantas viagens vim a fazer.
Voltar à ilha foi, não o digo por liberdade poética, reconhecer o meu mundo, aquele a que sempre pertenci, a que pertenço sem remissão. O mar, esse mítico espaço que um só ilhéu conhece e compreende plenamente, que só um ilhéu ama ilimitadamente, volveu-se-me tão íntimo como as águas iniciais o foram na primeira viagem. Assim as brumas. Assim o verde que se alonga até ao oceano inteiro, do qual nem os meus sentidos nem a minha alma se apartam, pois, mesmo que o quisessem fazer, não lhes era isso possível. Todos temos o nosso espaço particular, isto o penso com frequência, e o meu é a ilha, que nunca se esgota porque se prolonga no mar que a envolve.
Se a minha primeira viagem foi um apartamento dessa terra-mãe que é a ilha, a segunda foi um resgate de mim mesma, pois regressei à ilha. E regressei para sempre, porquanto todas as viagens posteriores foram feitas com o propósito do regresso. E, sempre que regresso, os meus sentidos e a minha alma experimentam o deslumbramento do primeiro retorno. Parti para voltar – é o que penso sempre que, saindo do avião que me traz das incursões no mundo dos outros, retorno a este espaço todo meu, onde eu sou eu e o mar e a imensidade verde que me espera.
Chego a pensar, quando o avião aventuroso aterra, que a ilha espera por mim, que me diz “chegaste, que bom, esperava por ti, tive tantas saudades”, e eu saúdo-a comovidamente, quase pedindo desculpas por aquele tempo que dela estive apartada, como se a tivesse traído um pouco por ter buscado outros lugares – qual deles o mais encantatório, é verdade, mas nenhum meu. Ou eu de nenhum deles, pois a este pertencem os meus músculos e tendões e ossos e órgãos internos e pele e alma inteira.
Paula de Sousa Lima, escritora, vive na ilha de São Miguel, Açores
Lagoa, S. Miguel, 03-01-2025
Agradecemos à escritora Paula de Sousa Lima por autorizar que estes deliciosos textos sejam publicados nesta plataforma de artes e letras da Bruma Publications, parte do instituto PBBI da Universidade do Estado da Califórnia em Fresno. Estes textos serão publicados nesta plataforma em português posteriormente republicados também aqui em tradução.
Textos originalmente publicados no jornal Ilha Maior da Ilha do Pico, Manuel Tomás, director.
