
Nas circulantes da memória açoriana, há nomes que não se apagam — não porque bradam, mas porque editam. Ernesto Resendes é um desses nomes. Um verdadeiro operário da palavra impressa, um artífice silencioso que moldou a paisagem literária do arquipélago como quem cultiva um jardim de letras ao vento do Atlântico. Quer com a Nova Gráfica e, mais tarde, com a Letras Lavadas, não apenas construiu empresas: semeou possibilidades. E o que floresceu foi mais do que livros — foi uma consciência editorial voltada para os Açores e para o mundo.
O meu amigo Ernesto Resendes não é apenas um homem das artes gráficas — é um alquimista do papel e da tinta. Como o disse numa recente entrevista desde muito jovem, foi tocado pela vontade de aprender, de trabalhar, de criar. Da tipografia manual ao universo digital, a sua trajetória é feita de adaptações e visões. Ao longo de mais de quatro décadas, soube manter-se fiel a uma missão: dar forma gráfica à cultura açoriana, e dar-lhe asas. Com determinação e sobriedade, fez da Nova Gráfica um dos pilares do setor editorial nos Açores, superando crises, renovando-se com tecnologia, persistência e visão.
Foi, essencialmente, com a Letras Lavadas que o seu papel como editor ganhou uma nova dimensão. Não se trata apenas de editar livros, mas de editar os Açores — esse espaço de identidade múltipla e dispersa. Com mais de 320 títulos e 150 autores publicados, a Letras Lavadas tem sido casa e o farol para os escritores insulares, dentro e fora do arquipélago. Ao privilegiar a história, a poesia, o ensaio, a biografia, e ao dar espaço a novas vozes, construiu um catálogo onde pulsa a alma do arquipélago. Livros como quem ergue miradouros: para ver mais longe, para dizer que aqui se escreve com a mesma dignidade do mundo.
O meu distinto amigo Ernesto Resendes compreendeu, desde o início, que editar é um ato de pertença. Cada livro é um gesto de afirmação cultural, um testemunho da riqueza literária que habita estas ilhas. Ao mesmo tempo, percebeu que a açorianidade não termina no cais. Ela estende-se pelos portos da diáspora, pelos bairros de Toronto, pelas planícies californianas, pelos corações que ainda sonham em português mesmo quando pensam em inglês. É nesse espírito que nasceu a parceria com a Bruma Publications da California State University, Fresno.
Esta parceria, entre a Letras Lavadas e a Bruma, é mais do que institucional: é uma ponte poética entre o arquipélago e o continente norte-americano. Através da tradução literária do português para o inglês, a literatura açoriana reencontra os seus herdeiros — os netos e bisnetos de emigrantes que já não leem Camões na língua original, mas que reconhecem, nas palavras de um poema traduzido, o cheiro da casa da avó. Chegar a essas gerações é garantir que a açorianidade não morre no silêncio da assimilação. É transformá-la em diálogo, em memória partilhada, em cultura viva. Graças ao meu amigo Ernesto Resendes, a Bruma e a Letras Lavadas, juntas, são sementeiras dessa continuidade, com a missão de dar corpo às vozes açorianas, ligando as margens da ilha ao coração da diáspora.
Ao afirmar-se no mercado local com a mesma ousadia com que se projeta para o exterior, a Letras Lavadas responde a uma vocação dupla: proteger e expandir. Ernesto Resendes soube ver os Açores como um centro e não como uma periferia. O seu compromisso com os autores locais, com a diversidade temática, com a qualidade gráfica e editorial das obras publicadas, torna-o num verdadeiro curador da identidade açoriana. Num sonhador pragmático, que constrói futuro página a página.
Hoje, ao olharmos para as estantes da livraria Letras Lavadas, não vemos apenas lombadas e títulos: vemos rostos, ilhas, vidas, diásporas. Vemos a constelação que o meu amigo Ernesto Resendes ajudou a mapear com rigor, sensibilidade e visão. O seu percurso inspira não só pelo que já realizou, mas pelo que continua a possibilitar. Porque editar é um verbo que nunca se conjuga no passado: é sempre presente e promessa.
Ernesto Resendes é, pois, mais do que um empresário ou editor — é um mediador entre tempos, lugares e vozes. Um guardião das letras que, com humildade e firmeza, escolheu servir os Açores não apenas como um lugar geográfico, mas como um espaço literário de resistência, criação e pertença. A sua obra é feita de papel, sim — mas é também feita de eternidade.
Neste gesto de homenagem, que é também de gratidão, reconheço que é acima de tudo um mestre da tipografia afetiva, um arquiteto de sonhos encadernados, um semeador de livros que continuarão a falar por nós, mesmo quando já não estivermos aqui para lê-los em voz alta.
E ao fazê-lo, continuará a fazer o que sempre fez: dar aos Açores a dignidade que a Região merece — no silêncio maduro da impressão. Na construção de um arquipélago literário que liga os Açores ao mundo, palavra a palavra.
Da gráfica à livraria, o meu amigo Ernesto Resendes ergueu com palavras um arquipélago cultural onde a açorianidade floresce em todas as latitudes.
