AS  SANJOANINAS por MARIA LUÍSA SOARES

                                              

     Aquela era na Ilha uma época de bulício e de festa.

     Dizer isto é, evidentemente, dizer muito pouco. O que se sentia mesmo sem nada se dizer, era o fervilhar de uma  energia nova, um relaxamento saboroso e feliz, a bem-aventurança e o regalo que acomete as lagartixas quando as visitam os primeiros raios de sol-prenúncio-de-bom-tempo.

    Era a festa, senhores, era a festa.

    Faziam-se limpezas de minúcia às casas, aos quintais, uma mão de cal aqui e ali, alargando-se o êxtase de deslumbramento às pessoas e às mil maneiras que há para se embelezarem da cabeça aos pés, que a ocasião justificava e não ficava nada bem a gente de fora visitar Angra e surpreender às suas gentes desmazelos e atitudes menos dignas, justamente por ocasião das festas maiores dos Açores.

    Tudo se conjugava no esforço e empenho, ou não estivessem também os três santos populares com as gentes da Terceira: primeiro o Santo António, depois o S. João e finalmente a coroar os grandes delírios festivos, o S. Pedro.

    Por ora era o S. João, um santo que de triste não tinha nada, honra lhe seja feita, e era isso mesmo que parecia pairar no ar no rasto de cada foguete, cujo estarelejar o eco se encarregava de ampliar em ribombâncias amplas e que eram as responsáveis pelos muitos sustos repentinos e pela excitação dos risos curtos e sopeados.

    Vivia-se o susto e o sobressalto de uma recém estreada felicidade, altamente contagiante, altamente alastrante. Por isso é que não havia distinção entre novos e velhos.

    Era um estado de alma, se quisermos, um estado de graça coletivo que inebriava e envolvia todos os seres animados e inanimados no mesmo estonteamento feliz. Via-se as plantas  reverdescerem e desabrocharem de um dia para o outro sem outra explicação que não a da festa e a da obrigação que tinham em contribuir para ela. Nunca o jardim de Angra se viu a braços com tamanha explosão de vegetação, cujo vigor incontido chegou a assustar os jardineiros por lhe temerem os excessos. As plantas das varandas em seus vasos eram um encanto para os olhos e isso era motivo de particular enlevo dos seus donos, sabendo-se pela experiência de vários anos que, passadas as Sanjoaninas, elas deixariam de exibir semelhante exuberância de cores e de cheiros.

    As diferentes flores e plantas dispersas pela cidade em arranjos de adorno e embelezamento dispensavam as regas e cuidados habituais e mantinham um brilho e um viço invulgares, não manifestando ninguém estranheza ou reparo diante destas singularidades, todos poupando seus assombros e espantos para a festa e seu cortejo.

   Em jeito de achega, talvez se pudesse acrescentar que uma boa quota-parte de responsabilidade se podia assacar à semi-intempolaridade em que tudo e todos pareciam levitar. É certo que os nevoeiros de S. João também ajudavam a reforçar este estado de coisas  e ninguém ousaria dizer o contrário.

    Mas a verdade é que estas invulgaridades continuavam a manifestar-se muito impunemente e, todas as vezes que alguém entrava numa das carrinhas da Câmara para fazer a ligação da rua da Sé à Guarita ou da Praça Velha ao Bailão, era certo e sabido o pequeno ecran da televisão acolhê-lo lá dentro com uma emissão que era justamente adequada à medida dos sonhos de momento, isto é, cada qual podia rever-se naquelas músicas, naquelas letras e até nas imagens do ecran.

  Uma coincidência mágica que ia alargando em cada um a capacidade de sonhar.

  Um luxo e uma oportunidade que não se podia desperdiçar, acrescentarei eu, sabedora que sou da carestia de tudo o que tem ligação com o sonho.

   Não sei se foi por entendimento paralelo com o meu que aconteceu o que aconteceu. O comportamento humano está longe de ser previsível e de obedecer a leis rígidas. Aquilo que sei e do que posso dar conta é o que se passou depois com dois habitantes desta mui nobre e festeira cidade de Angra do Heroísmo.

   Surgindo da rua do Palácio na rua da Sé, um mar de música e de gente em movimento tolhia de  surpresa festeira qualquer pessoa, mesmo que essa pessoa fosse Antónia, moça muito dona do seu nariz, das suas disposições e igualmente de falsas seguranças. Mas convém que se diga que o calor que sentia não era o natural calor de um possível cansaço, e sim gratidão contente por haver momentos daqueles que a faziam sentir-se viva, em íntima partilha com os demais à volta.

    Sim, sem dúvida, os organizadores da festa tinham-se excedido naquele ano, talvez porque o tema  Camões e a ilha dos Amores,também ajudasse, o certo é que Angra era um espetáculo impressionante, um espetáculo com o qual apetecia estar em  sintonia..

     Foi quando o avistou, no meio da multidão e da cor., ele também impecável, com uma fatiota clara, elegante, apropriada à ocasião. Aquele vizinho tinha-se tornado há muito num enigma.  Um enigma a que começava a habituar-se. Mas  naquela ocasião, quis crer Antónia que, dentre as demais pessoas, os olhos dele a fixaram com um agrado especial. Um agrado muito contido e distante, é  certo. Quis-lhe parecer que também ele andava por ali como ela, a fingir que tinha um destino fixo e a imposição de uma necessidade que lhe ia ditando os movimentos, os passos e os impulsos. Respirou fundo e firmou-se num andar seguro e no  inevitável que eram aqueles ruídos basálticos arrancados às pedras do passeio.

   Sem grandes pressas viu montras, fingiu-se interessada em várias coisas expostas e, sobretudo, ia ajuizando do que valia cada comportamento, explícito ou não, num alerta que já era habitual nela.

   As crianças estavam particularmente crianças e havia episódios giros com o sol a inundar tudo e a ajudar à festa. O sol e a música dos autofalantes, idem.Não se cansava de achar que a cidade estava  irreconhecível e era bem um digno lugar, escolhido por tantos forasteiros. 

   E que amorosos quase todos. Dir-se-ia que Cupido tinha construido uma teia invisível à volta de cada um, por isso eles se viam inevitavelmente aos pares e tinham gestos doces, de carinho e de procura que enterneciam quem estivesse de fora. Antónia ainda apanhou no ar, em tresmalhice de trajeto e de destino, um ou outro daqueles sorrisos, daquelas expressões amorosas, depressa recuperadas e remetidas por inteiro a quem de direito.

    Por fim, quando acabava de comprar um frasco de verniz, e se detém um pouco ligeiramente ofegante e encalorada,eis que o avista no outro lado da rua também parado. Será que  estava a  segui-la,pergunta-se. Nunca tinham falado, embora ele fosse seu vizinho, um vizinho que ora a observava disfarçadamente, ora a ignorava, arrependido. Andava sempre sozinho e impecavelmente vestido. Que vida seria a do indivíduo?

   Coisas que antes nunca lhe tinham merecido especial atenção, agora erguiam-se vivas dentro de si, ao mesmo tempo que tinha quase a certeza de estar a ser observada por ele. Primeiro com algumas cautelas, depois com mais atenção.

    Então enche-se de uma falsa pressa e arranca dali para ir esperar um autocarro noutro sítio. Quer pô-lo à prova. Estaria ele a arriscar desta vez? Ou se calhar era apenas impressão sua. Uma tolice, alimentada pela festa. Vai-se embrulhando nestas reflexões a distanciar-se de possíveis desencantos ou de possíveis envolvimentos.

    Mas é difícil, com o sol cada vez mais intenso, um sol incontido e precoce de um junho precoce e a música em altos brados mesmo ali em frente. Tão íntima aquela música. Tão visceralmente humana e apelativa. Noutras circunstâncias, sem o sol e o enleio, até que seria uma música vulgar, sem nenhuma mensagem especial, dessas que se gravam e ficam a fazer estribilho dentro de nós.

   Ah mas não, agora tem a certeza, ali está ele postado no lado de lá da rua em frente ao Atanásio e com óculos de sol postos, o parvo ( porquê os óculos de sol?).

. Por momentos sente-se tocada por uma invisível voltagem que lhe vai desencadeando os estados de espírito mais díspares, a começar pelo desconforto e a insegurança  de “tolice” não ser a palavra adequada para o que se estava a passar, e acabar no arroubo de fazer suas as palavras da música:”Eu preciso de ti/eu estou à tua espera…”

   É de mais, até parece uma adolescente. Ainda bem que ele acaba por ir descendo a rua, vagarosamente, mas vai descendo sempre, discretamente, até lá ao fundo, espera ela, já que nem se atreve a averiguar bem.

    Felizmente que o autocarro aparece. Que fazer: ir mesmo embora? Mas…é  isso que queres fazer, Antónia….privares-te da festa por causa de um vizinho palerma? Deixa-o vadiar sem destino, talvez não saiba fazer mais nada, o pobre. A ela, a festa chama-a. Ou alguém com voz de festa. É quando avista o Vasco a acenar-lhe. O Vasco, colega de outros tempos que, pelos vistos, também se sentiu atraído pela festa e deixou o Pico onde ´é suposto dar aulas: Antónia! Eh, Antónia!Ora viva! Bem sabia que te ia encontrar por aqui, mulher-festeira!

        E, este sim,  vem coartar-lhe todos os  os propósitos de uma retirada precipitada,

        Numas Sanjoaninas de acaso pode acontecer muita coisa, Mesmo apesar da presença de pessoas de comportamento intrigante.                                                                                    

Maria Luísa Soares, escritora

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