AS BOTAS do  JOAQUIM por MARIA LUÍSA SOARES

                                                   

           Estranho percurso o meu desde o dia em que saí das mãos daquele que insuflou vida e chama à minha vida de bota.

       Sempre existi na condição de par de outra, a minha alma gémea,  ou minha complementaridade existencial, como quiserem. Porém as vicissitudes da vida acabaram por nos separar e aqui estou eu assumindo a singularidade de única componente do que deveria ser um normal par de botas.

           Começámos por respirar o deslumbramento de existir primeiro à luz de intensas lâmpadas leitosas, mais tarde à luz plena do dia. E consumado o ato da criação, puseram-nos alinhadinhas numa prateleira, uma ao lado da outra. Éramos tão novinhas, tão indefesas, tão fáceis de maravilhar!  Mas durou pouco o tempo de prateleira em que muito ao de leve recebíamos as lufadas de vertigem e de atropelo vindas do mundo lá de fora, porque inesperadamente nos aprisionaram numa caixa de cartão.

         Ah pobres de nós, no limiar de uma vida que intuíamos gloriosa, recheada de imprevistos, ver-nos assim reduzidas à vil condição de encarceradas! Encarceradas vivas,sim, porque as nossas pobres almas palpitavam de revolta, de desgosto, de perplexidade. Era para aquilo que nos tinham feito nascer? Talvez não tivéssemos mesmo futuro nenhum ou talvez o nosso futuro fosse apenas sonhar e ficar sempre aquém de. Precisávamos urgentemente de respostas.

      Impercetivelmente aos poucos, aquele limbo à nossa volta foi-nos tolhendo, mirrando, embotando e acabámos por mergulhar na condição abjeta de mortas-vivas a quem já nada importava..

          Mas veio um dia em que aquela modorra existencial deu de si. Sentimos estar a ser levadas de um sítio para outro, e embora sempre às escuras, ouvimos dizer que íamos ser levadas para uma sapataria nos Açores. Bateram as nossas pálpebras de alvoroço!

       Finalmente íamos cumprir o nosso destino de botas ávidas de viver sonhos maiores que nós.

       Que dizer do golpe de luz que nos fulminou quando, arribadas em terras açorianas, removeram a tampa que nos cobria? Sentimo-nos umas pobres botas, tontas e desvalidas, ali naquela sala enorme, rodeadas de outras irmãs que nos olhavam com uma curiosidade divertida.

       Apercebemo-nos logo da mudança de mundos . Ali sentia-se uma menor acutilância de ruídos e de sobressaltos, antes  a vivência quotidiana de uma bem-aventurada paz doméstica. Ou talvez fosse antes a satisfação morna e anquilosada que se traduzia num falar arrastado, num conformismo atávico em que diversas vezes o nome de Deus era invocado : Ai que tempo nosso Senhor nos manda!, mas bem bom  enquanto não for a pior, Vai-se andando enquanto Deus quiser…. Diziam isto e desfilavam  diante de nós, o olhar embaciado  pelo interesse e às vezes por uma fugaz cobiça. Quando algumas daquelas mãos se estendiam para nós, nos afagavam e nos dissecavam até aos mais íntimos pormenores,éramos tomadas de tremuras incontroladas  que, ainda hoje, não sei como passavam despercebidas.

      Até que um dia, alguém apressado e silencioso, pôs fim à nossa natural expetativa. Era um sujeito baixo, ligeiramente atarracado que nos calçou, deu alguns passos e depois de indagar o preço, sem hesitações supérfluas, nos levou com ele.

     Não se podia dizer que fosse uma casa alegre a sua : vivia sozinho, apenas com um pássaro de gaiola com quem repartia os pensamentos e as conversas. Ficámos a conhecer-lhe o nome pela mulher a dias que, dia sim-dia-não,  lhe dizia, Deixo-lhe a comidinha no forno senhor Joaquim, e ia-se embora deixando-o à vontade para interpelar o pássaro: Então, meu velho, a Berta esqueceu-se de te mudar a água? Desta vez não. Já deste por isso que saí mais cedo? Cada vez suporto menos aquilo que faço lá pelo serviço. E o pior é que não antevejo sinais de mudança. Não estou a exagerar, não. Não me viste ontem à noite a contar os trocos? Tudo porque continuo a marcar passo lá no emprego reles que me deram. Já te contei que ali naquelas Secretarias só vai longe quem é do Partido. Raios me partam se faço mais cedências. Prefiro apertar o cinto. Mas não me olhes assim, nunca te há-de faltar a alpista. E indo a casa desses meninos ricos dar-lhes explicações ainda faço algum. Agora por isso, estou atrasado. Ciao. Fica a tomar conta da casa.

      E lá fomos nós. Mas bem víamos como os indícios de uma frustração amarga subiam de tom nas conversas que retomou com o pássaro. Vivia um período de grande desacerto, o Joaquim: até se esquecia de nos dar brilho e de nos tratar com o esmero habitual.

     Até que veio um dia em que, desarvorado, subiu a ladeira e deu o grande passo: inscreveu-se no Partido!

     Mas nem assim as coisas se alteraram. E por cada dia que ele entrava no serviço, uma de nós costumava dizer: Será hoje que ele consegue ser promovido? Oxalá, bem o merece.

     Mas não havia maneira de, apesar de inscrito, vir a dita promoção e o Joaquim ensimesmava-se cada vez mais, enredado num pudor triste que o impedia de indagar o porquê da demora.

    Eis senão quando, num dia que podia ser semelhante aos outros, ondas de sobressalto à solta fizeram perigar os alicerces da cidade. De um dia para o outro, bandos de borboletas azuis invadiram todos os recantos de Angra do Heroísmo e arredores, desconhecendo-se se tinham sido trazidas pelas nuvens em revoada, se pelos ventos novos que se respiravam. 

      Houve também quem dissesse que cheirava a esperança.

     O certo é que por um desses dias daquele outubro de sabor novo, Joaquim acordou dir-se-ia que habitado por um invisível aguilhão de verticalidade que o levou a alterar a rotina diária: não foi trabalhar. Em vez disso, escancarou a janela do quarto por onde entraram aos borbotões borboletas de asas azuis juntamente com as notas de uma música que não era uma música qualquer, pois que trazia consigo a marca da predestinação.

    A minha companheira não resistiu e beliscou-me. É que o Joaquim estava a aperaltar-se todo: banho vigoroso, barba cuidada e, enlevo dos enlevos, botas engraxadinhas de fresco. À última hora desapontou-nos um pouco quando, em vez de nos calçar, nos colocou no parapeito da janela: Os sapatos vão melhor com esta roupa, e, ligeiro, abalou porta fora.

     Ficámos ali tempo sem conta a sentir a festa daquele treze de outubro que levedava lá fora  no meio de estranhos sinais de prodígio.

     Raízes subterrâneas e novas brotaram com força e fizeram estalar o empedrado de basalto antigo que cobria as ruas da cidade e apareciam assim à luz do sol sem encontrar resistência ou obstáculo que ousasse enfrentar-lhes o vigor e a força desmesurada. Por isso cresciam, cresciam até ao céu e depressa se tornaram plantas gigantes a desafiar a compreensão de todos, novos e velhos, que olhavam para elas como o prodígio dos novos tempos.

     A minha companheira, de tão excitada, começou a mexer-se mais do que devia e, às tantas, vi com horror que se estampava lá em baixo, onde os miúdos da rua, por entre malabarismos futebolísticos, acabaram por a levar com eles para bem longe da minha vista e do meu coração.

   Ainda chorava o seu fim trágico, quando a noite estava longe de esgotar os seus prodígios e a cidade inteira parecia ir explodir por entre buzinadelas, foguetes e peças de artilharia.

    Era a voz de sempre, nunca amordaçada, que acompanhava o crescer das plantas gigantes e o regresso de Joaquim a casa.

   Veio fechar as janelas e quando me viu, agarrou-me de encontro a si  e pôs-se a dançar comigo pela casa toda. Não me surpreendi quando lhe senti o peito arquear num soluçar fundo e lhe ouvi as palavras molhadas de lágrimas felizes:

                                                              É o fim daqueles filhos da mâe!

                                                                                        MARIA LUÍSA SOARES

                                                                                                    escritora

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