Homenagem ao longo do mês de maio de 2025 a Álamo Oliveira que a 2 de maio deste ano celebrou 80 anos de vida.

De Álamo Oliveira e da grande literatura por Vamberto Freitas
De caminho foi pensando na inutilidade do seu martírio intelectual. Afinal, havia o Camões que era o mestre da Língua, o Vicente dos autos e das farsas, o Eça da imoralidade romanesca, o Pessoa da arca mais milagrosa que a do ilusionista, o Nemésio da açorianidade.
Álamo Oliveira, Pátio D’Alfândega meia noite
Acaba se ser publicada a 2ª edição do romance Pátio D’Alfândega meia noite de Álamo Oliveira, pela Companhia das Ilhas, sobre a direcção de Carlos Alberto Machado, romance que tinha sido publicado em Lisboa pela editora Vega em 1992. A prosa deste autor açoriano oferece-nos grande brilhantismo ficcional e um certo historicismo, ora revisitado ora reinventado, de todo apto a refazer e a redizer “realidades” velhas de séculos. Desde há algum tempo está de volta em Portugal o romance dito de ideias, se é que alguma vez ele possa desaparecer. Toda a literatura, em graus variáveis, já se sabe, é esse interminável jogo entre facto e ficção. É também na habilidade artística de cada escritor que reside a diferença entre a escrita que perdura no tempo e a que não deveria nunca sequer ser lida – a diferença, nada menos, entre o saber mitificar a memória histórica e colectiva de um povo, criando o próprio escritor novos mitos e iniciando miticidades, assim como o mero estilismo na construção de frases antes ocas, frias e naturalmente vazias. Cada leitor terá a sua lista de livros a que nunca mais voltará, sabendo muito bem porquê. Este, estou em crer, não será um deles. Existe algo mais em Pátio D’Alfândega meia noite, e que, em ficções anteriores deste mesmo autor, havia sido só sugerido – a metaficção como tema inteiramente desenvolvido, e aqui servindo-se a várias vozes para se refazer ou, uma vez mais, redizer o passado, longínquo ou mais recente. Jericó é Angra do Heroísmo, todos saberão. No entanto, tudo o resto, contado e recontado pelos protagonistas Patachão e o Poeta Porreirinho, este que deixou um romance inédito e o outro que tenta interpretá-lo e editá-lo após a morte do seu amigo, é uma festa de história revisionista, de sismos e de ciúmes, de aristocratas e de plebeus, de xenofobia e de universalismo, de fantoches e fantasmas, de céus, de infernos e do pátio D’Alfândega – o lugar onde uma cidade e uma certa população se passeava e se dava conta, séculos fora, que no além existia um mundo e (insinua agora o escritor) a ilha que era e é apenas outro canto desse universo total.
Um livro saído de qualquer escritor com obra feita deve ser – devia ser sempre – um marco nesse original percurso artístico, e este, por certo, vai gozar desse estatuto. Todo este romance está estruturado à volta de um crime e da reconstrução de Jericó após um violento sismo. O romance dentro deste romance, o que foi deixado pelo Poeta Porreirinho, é aparentemente uma tentativa de se recontar como toda uma cidade, na fúria que é a sobrevivência de um povo ante violentos avisos da natureza atlântica e a genética ganância de quem em tudo manda e desmanda, se auto-convence da sua virtude e percebe a sua continuidade histórica. Das páginas legadas por esse autor desaparecido e das que o seu amigo vem tentando pôr em ordem para uma publicação, que nunca chega a acontecer, a realidade-realidade é apreendida só em pedaços desconexos e a-históricos enquanto suas excelências sabem muito bem que a realidade ficcional é a mais completa – e logo perigosa. Nestes múltiplos diálogos está a dissecação das tramas, obsessões e memória colectiva da dita comunidade. Um fantasma estrangeiro (um holandês que àqueles portos arribou como náufrago e que se apaixonaria pela cidade e por uma das suas freiras) desce à terra para com o Poeta Porreirinho ir comparando notas com o passado e presente. O resto, repita-se, é uma festa de humor, sarcasmo e das mais lapidares frases.

“Ele vi-a – diz o narrador acerca de Patachão, o protagonista que tenta desvendar o romance do Poeta Porreirinho, e neste caso específico, a mãe deste, que também figurava na prosa póstuma do seu amigo – como que emergindo em todos os tempos, heroína anti-convencional e resplandecente, desdenhando dos castelhanos nos fins dos séculos XVI, debochando, no século seguinte, com um pirata na rua Baixinha, comendo favas de molho d’unha, rifando numa tasca de Santo Espírito a sorte numa noite bem passada, enquanto um liberal se cura de sífilis na Misericórdia do hospital. Ela veio desses tempos esquisitos e mal sabidos vencendo todas as batalhas da vida, até que desaguou no banco verde do Pátio D’Alfândega, velha, gorda e suja, dormitando pachorrenta ao som da música do seu transistor. Sujidade, gordura e velhice é tudo quanto basta para ser pitoresco. Como glória última, lutou pela liberdade com valentia aristocrática, dando ao diabo a virgindade com um major sidonista. Tão afrontoso desfecho não ficaria impune numa cidade de igrejas e de casas senhoriais.”
A rebeldia feminina açoriana poderá acontecer – e acontece – de vários modos, mas tem sido na ficção que esse libertador acto se vem enquadrando em toda a história social muito mais viva do que geralmente temos consciência – desde Vitorino Nemésio e Mada lena Férin a Álamo Oliveira. Aliás, este vivo diálogo com a história, que é essencialmente Pátio D’Alfândega meia noite, vai ainda além disso e constantemente alude a outras figuras culturais nossas, a partir de Gaspar Frutuoso do século XVI às gerações dos nossos tempos. Romance também alegórico, interliga dias, semanas, meses, anos e séculos para nos brindar com o “facto” de que tudo e todos permanecem o mesmo, a história de Jericó simultaneamente uma de pasmaceira e vivacidade, de ladrões e de santos. Por outras palavras, a humanidade em toda a sua simplicidade e complexidade, vista por mais este contributo a um riquíssimo corpo literário português que se chama literatura açoriana.
Desta circularidade e desejo de fuga, características tão marcantes da escrita açoriana, o espírito do lugar é como que outra viva voz deste romance, tornando-o (o próprio lugar) protagonista, terra, mar e céu determinando comportamentos e pensamentos, também. Açorianidade e, ao mesmo tempo, historicismo e mítica lusitana. O homem das ilhas, enfim, ocupando inteiramente o seu espaço num universo que ele sabe estar longe, mas que é seu.
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Álamo Oliveira, Pátio D’Alfândega meia noite (2ª edição), Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2017. Este texto foi retirado e reescrito de um ensaio meu publicado em 1992, e que agora é o prefácio desta edição do romance de Álamo Oliveira.
