
No Dia do Autor Português )que foi a 22 de maio), Victor Rui Dores convida-nos a uma viagem pela escrita que nasce das ilhas, mas que se abre ao mundo — com raízes na tradição e olhar crítico sobre o presente. Nesta entrevista, o escritor e encenador reflete sobre a formação literária, a defesa intransigente dos direitos de autor, o papel do livro físico numa era digital, e os desafios de se escrever a partir dos Açores. Entre referências clássicas e contemporâneas, Dores fala da literatura como compromisso ético, geografia afetiva e arma contra a banalização da palavra. As suas respostas, ora serenas, ora combativas, lembram-nos de que ser autor é também ser vigia do tempo, intérprete da memória e, acima de tudo, cidadão do mundo. Agradecmos ao nosso amigo Victor Rui Dores e ao jornal Correio dos Açores a oportunidade de trazer esta magnífca entrevista aos nossos alunos e leitores.
Entrevista Correio dos Açores
Victor Rui Dores – Dia do Autor Português
- No dia 22 de Maio celebra-se o Dia do Autor Português. Que significado atribui a esta data? E que lugar sente que os autores açorianos ocupam hoje na cultura portuguesa?
Atribuo um especial significado porque o 22 de maio é, antes de mais, o dia do meu aniversário… Há toda uma literatura de produção açoriana que vai muito para além de Antero de Quental, Teófilo Braga, Vitorino Nemésio ou Natália Correia. Infelizmente são apenas estes os nomes que são do conhecimento do grande público. Eu próprio elaborei uma lista que contém mais de 400 autores açorianos de quem hoje ninguém fala. Como se isto não bastasse, os que escrevem em Portugal batem-se contra 18% de analfabetos, 62% de portugueses que nunca leram um livro e 72% que não sabem interpretar um texto.
- Como avalia o papel da SPA hoje, especialmente numa época marcada por novas formas de divulgação e consumo de cultura?
Sou cooperante da Sociedade Portuguesa de Autores vai para 40 anos. Tenho sempre o cuidado de lá registar tudo o que escrevo. Sou um defensor intransigente dos direitos de autor e da propriedade intelectual. E, nesta matéria, tem sido muito importante a ação da S.P.A. Em tempo de muitas e desvairadas tecnologias da informação e da comunicação, defendo, acima de tudo, o primado do livro físico.
Fala-se hoje muito na era da informação como se a informação não existisse antes. Ora, cada época foi uma era de informação à sua maneira e em função dos suportes existentes. E se há coisa que podemos aprender com a História é que um suporte de comunicação não substitui o outro. Por exemplo: a fotografia não acabou com a pintura; o cinema não acabou com o teatro; a televisão não acabou com o celuloide; a cassete áudio e o Cd não mataram o vinil; o Skype não acabou com o telefone; os e-books não conseguem parar a torrente de livros em papel (nunca se publicou tanto como agora), e por aí fora.
- Como se formou como leitor? Havia livros por perto na sua infância?
Para além dos livros escolares – livros únicos aprovados oficialmente e patrioticamente visados pela censura do Estado Novo – iniciei-me na leitura com Júlio Dinis (que me abriu as portas à emoção literária) e Júlio Verne (que despertou em mim a curiosidade científica). Foram estes dois autores que me ensinaram a conhecer o mundo e, mais importante do que isso, ensinaram a conhecer-me a mim próprio.
- Que autores foram decisivos para o Victor Rui Dores escritor? Que autores portugueses contemporâneos acompanha com atenção?
Dos grandes clássicos, Camões, Almeida Garrett, padre António Vieira, Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e o genial Fernando Pessoa são os meus preferidos. Mas também Raul Brandão, José Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Jorge Amado, Augusto Abelaira, Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires, David Mourão Ferreira (que foi meu professor de Teoria da Literatura), Natália Correia, Pedro da Silveira, Dias de Melo, entre outros. Dos contemporâneos, acompanho, recenseando com regularidade na comunicação social, a produção literária de escritores açorianos das últimas quatro décadas, e tenho a já referida (e publicada) lista com largas dezenas de nomes que não cabem obviamente neste espaço.

- Que livros considera essenciais para pensar o que é ser autor hoje?
Ilíada e Odisseia, de Homero; Os Lusíadas, de Camões. Os Miseráveis, de Victor Hugo; David Copperfield, de Charles Dickens; Guerra e Paz, de Tolstoi; O Idiota, de Dostoievski; Madame Bovary, de Gustave Flaubert; Os Maias, de Eça de Queiroz, entre outros.
- Da leitura à escrita há um caminho por vezes óbvio, outras vezes sinuoso. A sua obra atravessa poesia, conto, romance e crónica. Como escolhe o género literário certo para aquilo que quer transmitir?
Limito-me a adequar a linguagem ao tema que quero ver tratado. Assim, os registos podem variar: do erudito ao popular; do literário ao coloquial; do drama à comédia; do lírico à sátira, etc.
- Muitos dos seus livros preservam o imaginário das ilhas. Pode-se dizer que sente um compromisso, ou identidade, com a preservação destas vozes e modos de vida?
Sem dúvida, até porque não há literatura sem geografia. Nos meus livros, os Açores são o meu microcosmo de referência e o epicentro do meu imaginário sentimental e afetivo. Porque é nestas ilhas que está a minha identidade, a minha essência, a minha verdade.
- Como pensa a questão do regionalismo na literatura?
O regionalismo poderá ser uma forma de enriquecimento da literatura, desde que não seja um fim em si mesmo. A literatura regionalista já deu o que tinha a dar. Falo dos perigos de uma escrita que se deixa enredar nas malhas de um certo impressionismo contemplativo da paisagem insular. Aprendamos a lição de Nemésio: temos de ser universais a partir das ilhas.
- Para além de escritor, é professor e encenador, com ligação à comunidade e à juventude. Que contributo pode dar o autor num tempo, que se entende, de rápida banalização da palavra?
Preocupado com o curso da existência humana no palco do mundo, o autor deve questionar o que se passa à sua volta, combater a simplificação hipócrita da vida, decifrar o enigma dos dias. Para tal, deve denunciar as verdades ilusórias e renunciar às máscaras de um quotidiano alienante. Porque é essa a sua missão: escrever contra o esquecimento.

- Conhece bem o contexto cultural açoriano. Que desafios enfrenta hoje um autor nos Açores? O que falta para que tenha mais visibilidade e reconhecimento?
Os escritores que vivem e escrevem nos Açores têm muita dificuldade em chegar ao outro lado do mar. Falta-lhes os circuitos de divulgação e difusão, mesmo dentro destas ilhas. Depois há este dado inapelável: o marketing, os lobbies e as capelinhas literárias concentram-se todos em Lisboa, e o resto é paisagem…
- Vivemos tempos complexos, marcados por conflitos, crises ambientais e polarização social. Que papel julga que o autor pode ou deve assumir perante este cenário? De que forma isto influência a sua atitude enquanto criador?
Vivemos num tempo saturado de comunicação, informação e imagem. Assistimos à contínua desvalorização da cultura literária e das humanidades. Temos aí uma juventude do TikTok que não lê e pensa pouco. E quem não lê e pensa pouco dificilmente terá aquilo que mais importa para uma verdadeira cidadania ativa: pensamento crítico. Ora, o autor não se pode fechar numa bolha e alhear-se ao que se passa ao seu redor. Tem de intervir. Para questionar e, se possível, para mudar o mundo.
- O que distingue, para si, um poema que resiste de outro que rapidamente se esgota? Qual é o papel do leitor nesse processo?
O bom poema é aquele que resiste à voragem do tempo. Ou seja, é aquele poema que é de todos os tempos e de todos os lugares. Porque é o poema que encontrou a sua universalidade. De resto, eu costumo dizer aos meus alunos que a diferença entre um bom e um mau poema é a mesma que existe entre um filet mignon e uma sandes de chouriço… Temos é de saber diferenciar.
- Escreve também letras para marchas populares, teatro e crónicas na imprensa. Tem diferentes “vozes de escrita”, ou o impulso criativo é sempre o mesmo?
Essas “vozes de escrita” existem porque sou um consumidor omnívoro de livros, um leitor compulsivo, e tenho de dar vazão a tudo o que tenho cá dentro. Vivo completamente viciado em livros, jornais e revistas. E é por isso que não fumo.
De resto, ler e escrever é, para mim, uma necessidade orgânica. Por isso a leitura e a escrita são a minha paixão e a minha profissão. E é a minha forma de perseguir caminhos de felicidade e de sonho.
- Para além da literatura, que outras artes influenciam o seu universo criativo? Que referências culturais são centrais para si no teatro, na música ou nas artes visuais?
No teatro tenho dois “maîtres à penser”: Stanislavski e Peter Brook. Na música, Mozart, Beethoven e Chopin enchem-me a alma. Nas artes visuais, os quadros de Paula Rego deslumbram-me e perturbam-me.
- Se pudesse escolher um excerto seu para ser lido no Dia do Autor Português, qual seria?
Todo o primeiro capítulo de Moby Dick, de Herman Melville.
- E que obra de outro autor português lhe ficou para sempre?
Aos 17 anos de idade, encontrando-me eu hospitalizado a recuperar de uma cirurgia às amígdalas, meu pai ofereceu-me um exemplar do romance “Mau Tempo no Canal”, de Vitorino Nemésio. Esse livro mudou a minha vida. Desde logo me identifiquei com a história de amores desencontrados entre a Margarida e o João Garcia, porque, na altura, também eu me debatia com uma grande frustração amorosa. Por outro lado, achei o livro admirável, pela sua notável estrutura romanesca, e porque dava a conhecer as nossas ilhas e desvendava a alma açoriana, ou seja, a cultura, a identidade, a memória e o imaginário dos Açores. “Mau Tempo no Canal” fez-me despertar para a literatura, porque foi através dele que compreendi que a literatura, afinal, é inseparável da vida.
- Está a trabalhar num novo livro ou projecto? De que se trata?
Entre vários projetos que tenho entre mãos, destaco o estudo que há quase meio século venho encetando sobre as variantes dialetais de cada uma das ilhas dos Açores. Com a colaboração de um designer meu amigo, estou a ultimar este projeto, recorrendo a plataformas multimédia, porque, obviamente, ninguém me vai comprar um livro com transcrições fonéticas…

