Por Dentro do Mundo, a Palavra: Nos 80 anos de Álamo Oliveira, uma celebração da escrita que nos humaniza (Homenagem a Álamo Oliveira)

A América Vista Dos Açores E Os Açores Vistos Da América (I)

Penso na grande viagem a que me propus, sujeitando-me a um continente de grandes fortunas e de não menores usurpações, revendo uma geografia até agora, por mim conhecida apenas em filmes.

Álamo Oliveira, Contos D’América

Escrever sobre Álamo Oliveira e a sua obra não é nada fácil dada a sua grandeza literária e o número de livros já publicados (mais de quarenta), muitos dos quais são uma espécie de dialogismo bakthiano uns com os outros e com a própria sociedade, ou então fundamentados em histórias que ele próprio viveu, transfigurando-as em personagens que não nos leva a reconhecer a origem da sua criação. Acontece que desde há muitos anos as suas visitas e estadias nos Estados Unidos são frequentes, indo lá como escritor e encenador, ou então para conviver com a família. A verdade é que a América tornou-se-lhe incontornável por essas, e ainda outras razões. É a partir dessas suas andanças e convivências que começam a brotar de si as mais variadas histórias da nossa imigração naquele país, incluindo alusões directas e indirectas nalguns dos seus poemas. Antes de mais, este autor pertence a um grupo que cortou na literatura com os então retratos caricaturais dos que tinham saído das nossas ilhas em busca do sonho americano, esses que se limitavam a meramente transcrever o que pensavam ser os seus compatriotas vivendo e fixando-se permanentemente no grande país a ocidente, de quando em quando, muitos deles regressando à sua terra atlântica de origem com roupas naturalmente muito próprias e linguagens recortadas entre duas línguas. Foi Álamo, tal como Vasco Pereira da Costa num brilhante livro de poesia intitulado My American Friends, que em Portugal cortaram com toda essa visão supostamente cómica, devolvendo aos seus compatriotas toda a sua humanidade e direito à diferença.

Hoje nos Açores esse modo de estar e ser tornou-se comum entre nós: estilo de vestir entre os mais novos, e um discurso que, de frase em frase, mete uma palavra em inglês, a maior das vezes mal pronunciada mas fazendo do seu falador um rapaz ou rapariga que acha conhecer o mundo através de uma ou outra canção anglo-saxónica, de filmes e séries televisivas. Nem conhecem a América, e muitos historiadores queixam-se que nem sequer a história do seu próprio país. Tudo isto só para reafirmar aqui que a décima ilha existe, desde o Canadá e os EUA até no Maranhão ao extremo sul do Brasil. Cabem à arte e a outros discursos recolocar tudo no seu lugar, enriquecendo o nosso cânone literário nacional, e manifestando a seriedade dos seres humanos que optaram por vidas diferentes, economia e cultura geral, tudo que determina o modo de estarmos no mundo, e isso não implica nada com o lados cómico ou existencial de vidas reinventadas, de linguagens diferentes mas cuja mistura fazem parte do mais íntimo ser e vivência quotidiano em qualquer sociedade. Toda a literatura, em qualquer dos seus géneros, é a memória de um povo ou povos, essa que vai além de nomes e datas, guerra ou paz, que são dado vivermos. Relembro neste momento que também a escrita em inglês por imigrantes de primeira geração acontece desde há muito, e a partir dos anos noventa entre muitos dos nossos descendentes, um pouco por toda a parte, muito especialmente na América do Norte e, uma vez mais, no Brasil. Em inglês ou português, são eles que nos perpetuam ou replantam as nossas raízes noutros solos.

Em Contos D’América Álamo Oliveira dá, de certo modo, continuidade a um outro romance seu situado na Califórnia, Já não gosto de Chocolates, primeiro editado em Lisboa pela extinta Salamandra em 1999, depois reeditado pela Companhia das Ilhas (que vem republicando muita da obra de Álamo Oliveira), das Lajes do Pico, em 2017. A relevância da primeira edição não só estava assim reconhecida, como muitos anos depois viria a ser traduzida na América para o inglês, e em Tóquio para o japonês. Apresenta-nos nesse outro romance a vida de fortuna e desfortuna de uma família imigrante e de luso-descendentes liderada por um protagonista de nome Joe Sylvia, com todos os gostos e desgostos de filhos que tanto andam na linha tradicional dos pais e dos seus antepassados num de trabalho contínuo e duro na agro-pecuária na sua época dourada californiana, como divergem nas suas orientações pessoais no que diz respeito a opções divergentes que, entre outras, envolvem a sexualidade de um dos seus filhos. É uma obra que fica como marco indelével da nossa existência longe da casa natal numa das nossas ilhas, que “humaniza”, repito, ou devolve a cada personagem a complexidade que é o existencialismo de qualquer ser humano. Sendo uma visão da América vinda simultaneamente de fora e de dentro (lembrando-me outro romance que foi escrito muito perto de mim), Álamo Oliveira disse definitivamente, uma vez mais, adeus à brincadeira de outros que residiam no arquipélago e nos olhavam como seres exóticos e igualmente ignorantes sobre o quanto aconteceu nos Açores após a nossa partida. Cheguei a ouvir que “a América era agora aqui” durante os anos iniciais da ajuda financeira europeia. É certo que hoje vivemos todos numa grande arca devastada, de vida e morte que pode acontecer no dia-a-dia. Também é certo que o nivelamento parece vir por baixo para todos os países, mas desconfio. Muitos emigrariam amanhã para a América se fosse de todo possível. Só que já (no momento em que escrevo) não aceitam os nossos transatlânticos aterrar nas suas pistas, e choram do mesmo modo a Base das Lajes sem grandes números de “américas” e sem os empregos e investimentos que mudaram uma ou mais ilhas açorianas para sempre.

O próprio título Contos D’América denota de imediato (ao contrário do que seria “Contos Americanos”) que se trata de uma visão dupla do nosso destino entre os Açores e os Estados Unidos, com a acção e personagens como que entaladas entre duas realidades, uma influenciando decisivamente a outra. São onze contos que criam ou reinventam personagens nas duas sociedades. Na minha leitura permanece a ideia de que dominam as mulheres na sorte de todos, famílias e relacionamentos pessoais, questões de um povo dividido por bens e lutas nos dois lados das suas vivências. O narrador, ele próprio, vai-se surpreendendo com o desfecho de cada narrativa, ironia e humor puro presentes em cada uma das suas histórias. Estou em crer, como muitos outros leitores, que a forma do conto é uma das mais difíceis para qualquer escritor. Tem de revelar, em pouquíssimas páginas, toda uma história com princípio, meio e fim, enquanto nos transporta para o interior de cada ser por ele inventado. Retira ainda em transfiguração total “personalidades” e o seu viver tanto da imaginação pura como utiliza, suponho, pedaços de vida que ele conheceu em directo tanto nos Açores como nas suas visitas à América. Como no seu já referido romance anterior sobre o mesmo tema, o narrador olha para as duas sociedades com a frieza e o calor que as duas sociedades lhe provocam. Dos Açores, serão pouquíssimos os que emigraram como “aventura”, e a vasta maioria por necessidade económica ou financeira. A pobreza da nossa terra contrasta gritantemente com o que ele encontra na América, mas não fica por aí. Olha e vê vivamente o outro lado da sociedade que sempre mais nos atraiu: vidas falhadas, famílias desfeitas, a comédia existencial de alguns personagens que fogem ao estereótipo que temos das comunidades a oeste.

Contos D’América não é só sobre os que se foram, mas boa parte também sobre os que ficaram na pasmaceira de décadas passadas, a braços com a sobrevivência e tendo depois de partilhar as suas propriedades com os que os visitam periodicamente, e têm de dividir a pouca ou muita terra e casas de que desfrutaram na ausência longínqua das suas famílias.

Vamberto Freitas, crítico literário

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Álamo Oliveira, Contos D’América, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2021. Publicado originalmente, em forma ligeiramente diferente e mais extensiva, na revista Gávea-Brown: A Bilingual Journal Of Portuguese-American Letters And Studies, Volume 43, Brown University, 2021. Publicado ontem (7 de Maio, 2021) no meu “BorderCrossings” do Açoriano Oriental.

Agradecemos à Luso-America Education Foundation o apoio prestado a esta plataforma e a todos os projetos do PBBI-Fresno State.

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