O meu avô e a cumplicidade do Vento em S. Jorge por Marua Luísa Soares

Havia alturas na IIha em que se ouvia o eco do mar como se se vivesse dentro de um búzio. Um búzio enorme que tinha um efeito entorpecedor e ao mesmo tempo exaltante.

     A certeza de estarmos muito afastados do resto do mundo submergia sem aniquilar, tal como o faziam na perfeição as ondas do mar em dias de retoiço isento de zanga.

     O Vento também nos fazia o favor de nos proporcionar aquele como se, e multiplicava-se em inúmeros cavalos à solta impossíveis de sopear. Cavalgavam cavalgavam sem parar em estrondos que varriam a IIha de lés a lés e tinham o condão de, sem  serem cavalos, nos fazerem sentir habitantes do tal búzio, despojando assim a ilha do malefício de ser Ilha.

    Disto me dou eu conta agora, a viver o presente longe da Ilha e enveredando pelos caminhos do passado.

   E vejo o meu avô a falar-me daqueles tempos em que tinham chegado a S. Jorge os continentais , interessados na produção queijeira da ilha. Contava-me que, entre eles, havia um em especial que dava pelo nome de Campos Rebelo, senhor de muita manha, que se obrigava a um sorriso parado e condescendente, a fazer tempo, o tempo suficiente de lhe chegarem às mãos todos os segredos para a confeção do invejado queijo de S. Jorge  Que já então era muitíssimo apreciado lá fora no Continente.

     Nessa altura, contava-me ele, todos pareciam felizes e contentes com aquele interesse e aquela partilha de saberes e de negócios. E eu, sem me conter e a interrompê-lo:

     -Pois avô, esse Rebelo de Sousa pode ter sido um negociante manhoso e interessado. Mas e as nossas pastagens?, ora diga lá. E as vacas? Os braços e a paciência dos jorgenses? E o Vento?, sim, sobretudo, o Vento? O Vento norte e o Vento sul com caraterísticas tão diferenciadas e tão decisivas no fabrico destes nossos queijos ( é que eu, já por essa altura sabia que os ventos transportavam segredos e  que nenhum estrangeiro os podia carrear para fora da Ilha, por mais que tentasse)?

   Contava-me ele que esta gente de fora se permitia às vezes comentar ou sugerir mesmo, que talvez não fosse o mais adequado  transportar o leite dos pastos em cabaças ou barris de madeira, como também deixá-lo a coalhar nas grandes celhas de cedro, talvez devesse ser noutros recipientes mais higiénicos. Mas considerações desta natureza, entravam por um ouvido e saíam por outro. Se vinham aprender, que aprendessem, dizia-me o avô. E continuaram os jorgenses a trazer o leite quente das vacas e a despejá-lo por cima dos grossos panos que cobriam as celhas, ali os deixando repousar até coalhar.

     -Só então podiam ir para os cinchos! Mas não sem primeiro se lhe ter juntado o fermento, um fermento muito especial e que constituía outro motivo de espanto da gente de fora porque era obtido de uma forma singular: era feito com cardos locais ou, o mais habitual. era ser obtido no bucho  de um vitelo ou cabrito que tinha de ser sacrificado em nome de uma boa causa.

      _Oh, avô!

     __Dava-se então a beber ao animal dois litros de leite materno onde se tinha misturado sal e um quarto de litro de vinagre.

      -Posso imaginar  o quanto custava ao pobre vitelinho ingerir uma mistela dessas!

      -Ah, mas ainda não acabei. Tinha que  se lhe provocar a morte para se extrair o bucho, minha linda.

       -E depois, avô?, um sacrifício tamanho tinha que ter um desfecho à altura, achava eu..

       -Depois, eram passos de muita paciência, cuidado e vigilância: enchiam-se os cinchos com a coalhada que se envolviam em panos sujeitos a uma pressão adequada debaixo de tábuas carregadas com pedras basálticas. Mas não se ficava por aqui: durante os cinco dias seguintes iriam ser polvilhados de sal e depois sujeitos a uma lavagem e fricção com pedra pomes, espremidos e esfregados ainda com coalhada fresca.

      -Que grande paciência a nossa! Também devia ser a última etapa: a da maturação e secagem dos queijos, não é verdade, avô?

       Para mim era a etapa de que eu mais gostava e em que me vejo a participar. Ainda existe a casa da secagem dos queijos com prateleiras improvisadas pendentes do teto, as tábuas onde se deixavam os queijos a curar.

   O cheiro dos queijos assim suspensos espalhava-se pelo recinto e arredores, numa promessa de fartura. Seguia-se então  uma vigilância diária: se se queria um queijo pouco curado para consumo caseiro, três  meses de cura era suficiente. Mas se se destinavam à venda/comércio, quatro meses a um ano, era o tempo ideal.

     Eram estas as regras básicas, o ABC que me habituei a ouvir dos pais, dos tios e dos avós.     Aprendi-as de tanto as ver praticar com a devida unção e igual sucesso. Como também aprendi que os queijos tinham que ser vigiados e virados por mãos hábeis, que não as minhas que eram as de uma menina.

       Hoje lembro como era engraçado acompanhar um queijo a crescer.  Havia sempre um com o qual eu me identificava e que eu tinha escolhido em segredo. Esse nunca era esquecido de ser virado e era o mais vigiado quanto ao arejamento, pois como era sabido, tinha que se evitar expô-lo ao Vento norte. Os queijos também eram sensíveis e podiam constipar-se.

      Os adultos tomavam à letra estas orientações, nunca as pondo em causa. Eram pessoas sábias e simples e dispensavam a sofisticação da técnica e o rigor da ciência. E, sobretudo, acreditavam piamente no grande poder do Vento norte que, se podia constipar os queijos, era também responsável pela qualidade do leite, querendo-se com isto dizer que, sob a sua influência, as vacas produziam menos leite mas mais gordura. Portanto, leite mais rico.

     S. Jorge persiste assim na minha lembrança, como uma Ilha-mistério com Ventos de mistério.

      Pode igualmente dizer-se que o Vento em S. Jorge desempenha o papel de fada-madrinha  porque, dentre as restantes ilhas do arquipélago, só àquela contemplou com seus dons e seus segredos.

      Este avô, tão empreendedor e cúmplice do poder do Vento. criou o primeiro modelo de queijaria a que, lá na freguesia, todos chamariam com orgulho A FÁBRICA.

       Ei-la, a Ilha das minhas lembranças.

       Quando vou à Terceira, em dias de desanuviamento de céu e de horizontes, dá gosto avistar-lhe a preguiça e a indolência com que se estende ao comprido no mar.

       Tão parada, tão quieta, tão senhora dos seus mistérios. Uma Ilha onde até hoje o Vento nunca se cansou de derramar os segredos que transporta.

       Uma Ilha onde eu tive o privilégio de nascer, por isso trago sempre comigo esta alma jorgense, cúmplice do Vento e dos mistérios ilhéus.

                                                MARIA LUISA SOARES, escritora

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