Por Dentro do Mundo, a Palavra: Nos 80 anos de Álamo Oliveira, uma celebração da escrita que nos humaniza.

Postal de Aniversário para  Álamo Oliveira

a menina da bandeira

vai de branco no cortejo

menina  à tua beira

sinto aroma de poejo.

         Em 2020 escrevi este texto para celebrar o aniversário do grande escritor e dramaturgo terceirense, Álamo Oliveira. Atendia a um convite de outro terceirense, Diniz Borges, escritor, crítico literário, editor e mestre. Acima de tudo, Diniz Borges é um açoriano comprometido com o futuro dos açor-descendentes, filhos e netos da diáspora que já não sabem falar português. Minha admiração por Diniz Borges é tão grande que um convite seu jamais será recusado. Até porque é mais que um convite é uma honraria. Diniz, naquela ocasião produziu uma edição especial comemorativa ao 75º aniversário do Álamo, associando-me a homenagem que o Maré Cheia prestava, no Tribuna Portuguesa, numa edição especial, sob sua coordenação. Hoje, 5 de Maio, encaminho o Postal de Aniversário, publicado em 2020 com ligeiras alterações para este 80º aniversário do Álamo e carregado de saudade. 

Este postal de aniversário não segue qualquer etiqueta social e nem pretende repetir o costumeiro “parabéns”. Até porque o destinatário sabe o quanto é querido e amado por sua gente, por uma malta de amigos espalhados por este mundo de Deus e por milhares de admiradores de sua obra que, com certeza, já o cumprimentaram pela passagem de seu natalício com os melhores votos de bem viver o ano entrante e todos que vão nascer.

Na manhã do último sábado de abril, dia 26, saí do The Schipyard Hotel , uma maravilhosa e moderníssima unidade hoteleira de propriedade do terceirense, Raimundo Borges, que alçou voos pelo mundo com a força do seu trabalho  e, hoje, vive entre Rio de Janeiro e Angra do Heroísmo. Caminhei pela Rua do Galo atrás de uma loja que vende produtos naturais. Subi e desci pelas ruas da baixa. Encontrei amigos e fiz amigos. Fui até o hospital para visitar Álamo Oliveira. Soube que já recebera alta e se encontrava na freguesia do Raminho. Onde mais haveria de estar?

Tomei o rumo do “Lar Doce livro” um lugar incrível, onde o escritor Joel Neto e sua mulher Marta me receberam como gente de casa para uma conversa sobre o meu novo livro Casa do Tempo. Amigos foram chegando e a conversa conduzida pelo Joel fluiu gostosa pelo espaço ocupado por livros (muitos!!!) e uma tribo de gente alegre e, as amigas Assunção Melo, Sara Leal, Maria de Fátima Amorim e o poeta caboverdiano António de Névada. A sessão terminou quando o sol se despedia. Segui circulando a marina até o Porto Pipa…refletia sobre aquele dia de Angra solarenga como uma casa senhorial. Lembrei dos amigos Marcolino Candeias, Emanuel Félix (seu neto João, a boa semente frutificou na música e nas letras),  Diniz Borges, Carlos Enes e do Álamo Oliveira cujo o aniversário estava muito próximo, 2 de Maio, desejando que naquele momento ele estivesse muito bem a se recuperar na sua casa do Raminho. E, claro, do “Postal de Aniversário” dedicado ao Álamo Oliveira no seu 75° aniversário! Foi o jeito que encontrei de dizer o quanto gostava do escritor, do poeta, do dramaturgo, do artista, da sua humanidade e do amigo.

Cinco anos depois aqui estou para repetir o dito naquele aniversário, referenciar a gratidão e a estima da amizade. Uma amizade que se fortaleceu ao longo dos anos e que está consignada em momentos de convívio, de ajuda, de aprendizado. Presente em cada palavra firmada, letra elegante e miúda, nos livros que recebi como uma preciosa prenda. Livros que me levaram a conhecer o universo mágico do escritor e do artista Álamo de Oliveira – o seu processo criativo, o pensar do intelectual brilhante, a sua capacidade de fabulação, a invejável memória e grande cultura

            Álamo, não é só um grande escritor açoriano como há muito tempo rompeu as fronteiras da sua Ilha Terceira e a partir da freguesia do Raminho correu abraçar outras geografias. Atravessou o Atlântico e por onde andou se fez ouvir na poesia, no romance, no conto, na crônica, no teatro – no drama e na comédia. Assim, no seu aniversário, em vez de oferecer-lhe uma prenda quero ir ao seu encontro portando “a bandeira da menina” de ontem e falar da escrita iluminada, escorreita, cativante e de grande sensibilidade que faz a diferença na obra marcada pela açorianidade, a refletir a condição de ilhéu, seja na permanência ou na errância. Extraordinária e indubitável riqueza!

menina de porte leve

graça de todas as graças

o teu olhar  doce e breve

deixa-me logo que passas.

            Sendo assim, ouso alinhar ao lado dos amigos das artes e letras açorianas, de um chão insular comum, de outras latitudes e de aventuras por “Califórnias perdidas de abundância(o verso imortalizado dePedro da Silveira) para botar a palavra em reverência à sua grandiosa obra..

            O breve passeio por alguns de seus livros que figuram na biblioteca aqui de casa provocou um prazer indescritível. O prazer de descobertas infinitas nas incontáveis páginas esculpidas por uma arte literária maiúscula, potente, impregnada de ternura e prodigiosa humanidade arraigada no olhar multidimensional que tudo registra, perpetua, universaliza.

            Sua poesia conheci em “Memórias de Ilha em Sonhos de História”. Pintura de Álvaro Mendes (2000). Conjunto de poemas a emoldurar cada pintura com irreverência e lirismo  – o que resta desse tempo não é saudade/é o sabor do teu corpo de alfenim./ o teu olhar cai bonito na varanda – (Rua Direita). No entanto, foi com António Porta-te como uma Flor com pinturas de António da Costa (1998) e andanças de pedra e cal (2010) que caí de amores por sua palavra poética, poderosa, atrevida, perspicaz, evocativa, mística, onírica…

Abundam adjetivos para expressar o meu encantamento diante de construções admiráveis na habilidade de cinzelar a linguagem com profundo gosto estético como nos deliciosos versos de “A Menina da Bandeira” em torno dos quais escrevo, ou os versos intimistas e intensos de andanças de pedra e cal como no poema “Tulare” – prende de cada vez como o rosto familiar/de uma ilha rodeada de saudade. O que dizer do poema “Rio”? o rio tem corpo cheio de beijos. Porém que fazer rio?/ não consigo rir do cheirinho favelado da pobreza.

Nada escapa do observador exímio. Nem a sensualidade da cidade maravilhosa, nem as mazelas sociais das favelas escondidas no samba do morro. Para além o poema faz história tal qual na “fantasia sobre uma cidade do sul” a documentar a grande aventura açoriana do século XVIII na procura de um quarto de légua em quadro e a escrever uma nova história. Conheci Poemas Vadios (2020) e fui à procura “pelas ruas das metáforas” da poesia perdida na esperança da suprema dádiva de “chamá-la a casa.”

            Conheci o dramaturgo com a peça “Os Sonhos do Infante”, na década de noventa, drama encenado pelo Grupo Alpendre na sua Angra do Heroísmo.  Uma proposta do estupendo poeta a entisicar a história com a inquietude do Infante e ao mesmo tempo a desafiar-nos com seus sonhos e audácias.  Depois os textos teatrais “ a solidão da Casa do Regalo” (2005) diálogo entre o exilado Rei Afonso VI e seu pagem na partilha da solidão e da loucura real. Quanto de alegórico há na peça que desnuda a humanidade?  Uma dramaturgia espacial regional, carregada das cores fortes do linguajar popular e dos usos e costumes da Ilha caracterizam o texto de “Quatro prisões debaixo de armas”(2012), baseado no conto homônimo de Vitorino Nemésio.

            Álamo Oliveira brinda-nos com uma produção literária intensa, imaginativa, cênica, performativa, liberta, espelhada na publicação de livros, de artigos em jornas, revistas e suplementos literários e no diálogo plural nas duas margens atlânticas, desassombrado, frontal e crítico. Um fazer literário estilístico a respirar arte por todos os poros e que faz a Ilha respirar junto ao movimento ondular de sua narrativa ficcional e o brilho ímpar do contador de histórias debruçado sobre as sutilezas de cada personagem. Exemplar literatura regional traz a marca do seu caráter inigualável, as diferenças culturais e as suas especificidades de mundividências na expressão do ser ilhéu, de estar no espaço insular e fazer da Terceira, a sua ilha mater, o porto dos que partem e se dispersam por outras geografias, mas também é o porto de ancoragem, de refúgio como também o são os demais espaços insulares palcos de sua ficção.

ai menina  menina

tentação de arroz-doce..

fogo redondo de bonina

tua bandeira quem fosse

            Se a identidade é percebida nas similitudes, no modo de ser e estar, de conviver, de criar e escrever, a literatura parida por Álamo de Oliveira é sobretudo identitária, alimentada n’alma e liberta, sem amarras ou limites. Abre-se como janelas escancaradas para o mundo. Num breve percurso pelas tramas dos romances de Álamo Oliveira curvo-me diante da maestria no seu jeito de narrar com manha, a seu estilo intimista, dono de uma incrível técnica do labor da palavra  meticulosa e envolvente. Um jogo entre a realidade e a ficção em que personagens movem-se esbanjando sentimentos de toda sorte. Ainda que, sob o manto do disfarce, da ironia e do seu aguçado senso de humor, transparece o diferencial humanista da sua criação.

            Em “Até Hoje Memórias de Cão”, 1986, a jornada do ilhéu João na guerra colonial portuguesa em África é contada de forma segura e verdadeira, numa linguagem vibrante que desnuda a amargura, a solidão, o desagregar humano. É singular pela descrição ousada  e realista da guerra como também na suavidade lírica e comovente da narrativa. Distante dos campos da Guiné emerge o refúgio insular, a imagem tatuada n’alma – “Era pela Ilha que João se deixava escorregar, a memória atada a todos os tempos, lugares, pessoas, sonho intemporais”(p.10). Também “Já não Gosto de Chocolates,” 1999, traz na urdidura da trama o rompimento das raízes e o cair no mundo. Uma identidade de percurso. Surpreende-me a construção polifônica de cada personagem deste incrível romance sobre a saga da família de José Silva  na busca incessante da felicidade por caminhos da emigração, a partir da Ilha Terceira até o Vale de San Joaquim, na Califórnia. Na América, o drama da família de Joe Sylvia e suas “dores crepusculares que vinham d’alma” é o mesmo de tantos emigrantes açorianos que assistem os seus valores e tradições postos em cheque-mate na sociedade de acolhimento. As novas raízes…o viver à margem das duas pátrias e a dor das perdas afetivas e identitárias. Ao traçar uma arqueologia sentimental familiar e social, Álamo promove o debate sobre os valores humanos e suas fragilidades. Sela em definitivo a dimensão de “universalidade” ao regionalismo insular.

            Preciso falar de “Marta de Jesus (a verdadeira)”, 2014. Um grande e audacioso romance que me nocauteou com seu enredo inesperado, fascinante que me fez cumplice dessa utopia transformadora, de um projeto messiânico de libertação social e política passível de existir.  Construído sobre a narrativa bíblica do Novo Testamento, contextualizado entre as décadas de sessenta e noventa, tendo por cenário a belíssima Ilha das Flores e no palco de tanta miséria e fome “ beleza e formosura não dão pão nem fartura”. No pano de fundo os Açores, o fenômeno da emigração e a guerra colonial em África. Álamo dá sopro de vida às personagens colhidas no evangelho “Naquele tempo” (o tempo remoto) e inseridas na mais ocidental das Ilhas. Um grupo rebelde de florentinos que prega a palavra da redenção reunidos em torno do Emanuel Salvador, doze seguidores, Lázaro e suas três irmãs Maria, Maria Madalena, Marta (e seu protagonismo). Um romance desafiante. Obriga-nos a ir aos tempos bíblicos e voltar a contemporaneidade e ao seu desenrolar amargo. Sem um final feliz e nem o milagre da redenção. Uma frustração que se enquadra aos tempos de agora. Afinal, e a libertação?   Um texto acutilante. Sem perder a verve lírica, perquiri a sociedade, extrai fragmentos cênicos, gestos, expressões, sentimentos, qualidades, vícios, manias. Marta de Jesus, a verdadeira ainda continua aqui provocando-me tal qual o “Bruxo do Contestado”, o monge João Maria, os “fanáticos”, a menina Rosa, e a sua insurreição libertadora por terras catarinas entre 1912 e 1916.

            Antes do ponto final, cito “Os Belos Seios da Serpente” (2024), apresentado em seu lançamento por Álvaro Laborinho Lúcio. Não tive ainda a satisfação de ler “Os Belos Seios da Serpente”, mas li as muitas resenhas, matérias e comentários sobre a prodigiosa liberdade poética do autor ao trazer acontecimentos bíblicos, à luz da época, entrecruzando com o tempo de agora – os embates da humanidade. Fica a curiosidade de mergulhar na sua leitura e no gosto de conhecer Os Belos Seios da Serpente, a imaginar como serão!

            Vivo dias iluminados de Maio, na ilha Catarina, no grande arquipélago Brasil. Abraço Álamo de Oliveira como aquela “menina da bandeira” carregada de sonhos, mesmo com o vento do ocaso a sacudir as janelas do meu tempo…

                                                                ó senhor espírito santo

  alva pomba divina

  não retires o encanto

      à minha linda menina!  

Lélia Pereira Nunes, escritora

Ilha de Santa Catarina – Maio de 2025.

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