Por Dentro do Mundo, a Palavra: Nos 80 anos de Álamo Oliveira, uma celebração da escrita que nos humaniza.

Uma ficção sobre o fracasso em tempos de esperança

Faz-se um percurso pelo romance de Álamo Oliveira e fica-nos o registo de um número de constantes ou núcleos  de referência que permitem uma visão de  conjunto e proporcionam um enquadramento inicial de Marta de Jesus (a verdadeira).

Efectivamente, desde o já distante Burra Preta com uma Lágrima, e para lá das diversificadas histórias e tramas desenvolvidas nos seus romances, Álamo Oliveira tem procedido a sucessivas configurações  do espaço insular açoriano, melhor dizendo, de espaços insulares, pois já nesse romance inaugural as andanças da protagonista levavam-nos através de três ilhas, do Pico a S. Jorge e, finalmente, à Terceira. E mesmo naqueles casos em que, por razões diversas,  as personagens são expulsas do seu chão e obrigadas a experiências de extraterritorialidade, há sempre um lastro insular a constituir-se como contraponto ao presente da acção, seja como  memória do vivido e da aprendizagem do mundo, seja como  uma realidade  próxima no tempo e  que permite  um diálogo com os  ausentes e afastados; dito de outra forma, a ilha constitui nesses romances um ponto de ancoragem,  mas também um pólo de irradiação  narrativa, na medida em que constitui um lugar de onde e se projecta no percurso de quantos dela partem e pelo mundo se disseminam, num processo conflituoso de permanência e de  transformação. Isso acontece em Até Hoje (Memória de Cão), com a ilha, ainda que até certo ponto fora da história,  a constituir uma espécie de refúgio e lugar outro para onde o soldado João se poderá transportar,  escapando-se ilusoriamente ao tempo conturbado e sufocante  da Guiné, com o  cheiro e o rumor das suas mortes e guerras; de certa maneira  é essa dualidade  ilha-mundo  que subjaz à família de José Silva/Joe Sylvia, de Já não Gosto de Chocolates,  repartida, geográfica e intimamente,  entre os Açores e a Califórnia, com as  suas abundâncias e constrangimentos. Se, no final, a ilha não será solução efectiva para ninguém (nem mesmo para João, que tendo sobrevivido ao pântano guineense não resiste ao sufoco e à claustrofobia insulares e acaba também na emigração), isso já é outra história,  que tem a ver com a fatalidade insular e com uma estética em que não há finais felizes. 

Por outro lado, o romance de Álamo Oliveira atesta a preocupação do autor em  diversificar os seus procedimentos técnicos e textuais, entre a representação de pendor realista e a ficção que se alimenta dos  seus mecanismos e deliberadamente os exibe num jogo irónico  de fingimentos e distanciações. Pátio d’Alfândega-Meia-Noite assenta na herança de um romance inédito  deixado pelo Poeta Porrerinho e que Patachão, assumindo-se como testamenteiro, se  encarrega de organizar e trazer a público: o seu trabalho de ordenação  do texto de outro, em busca de uma sequência que dê lógica aos acontecimentos, os comentários que vai proferindo, e ainda os acrescentamentos introduzidos  ao longo da narrativa – tudo isso faz de Patachão um leitor privilegiado e até um co-autor,  ao mesmo tempo que proporciona a ostentação do  duplo plano de que a escrita, em geral, se sustenta enquanto criação autoral e leitura. E Murmúrios com Vinho de Missa situa-se ainda num campo próximo:  a narradora Lucília alterna o relato da sua experiência de docente na Universidade de Tulane com a escrita de um romance sobre a experiência do Padre Raul,  seu conterrâneo  «refugiado»  nos Estados Unidos para escapar à chantagem de que é vítima por parte de José Carlos, com quem mantivera uma relação amorosa. Também aqui se verifica o procedimento da escrita dentro da escrita ou do romance dentro do romance, num encenação dos procedimentos criativos, a que, inclusive, as notas de rodapé adiantam, em  tom irónico, as (in)disponibilidades do autor, os  seus caprichos  e as consequências disso no produto que,  em último lugar,  o leitor acaba  por ter à sua frente.

E deve deixar-se ainda uma palavra sobre a construção de Burra Preta com uma Lágrima, uma fábula insular do século XX que na sua configuração semântica e narrativa recupera parcialmente as leis do género, embora divergindo para o universo religioso pela sequência das epígrafes que abrem cada capítulo: provenientes do Apocalipse,  elas transpõem as visões do evangelista João para um contexto de prodígios laicos temporalmente localizados perto de nós (o 25 de abril de 1974 e as sequelas do golpe militar passam pelo romance sob variados registos). Se este romance é também uma forma de homenagear o poeta da Vila de S. Roque do Pico (uma projecção ficcional  de Almeida Firmino), a dimensão burlesca do acontecimento final que motiva o abate  de Burra Preta (isto é, um coice desferido em parte sensível de um orador  político, acontecimento ocorrido já em território terceirense)  é ainda uma homenagem a  Nemésio  e eco literário do seu conto  “A Burra do Lexandrino”, em ambos os casos uma personagem   desaforada e com muito pouco sentido das conveniências e do decoro. 

Marta de Jesus (a verdadeira) é um romance que se constitui sobre um pré-texto literário, neste caso a narrativa bíblica do Novo Testamento e a partir de um núcleo que o título deixa exposto ao olhar e à compreensão do leitor.  A epígrafe extraída do evangelho de Lucas assinala o comportamento e o perfil antitéticos das irmãs de Lázaro, Maria e Marta, centrando nesta uma capacidade de acção e uma  inquietação que serão desconhecidas da  primeira delas; o dinamismo e o protagonismo de Marta relega  a irmã  para uma zona de penumbra e de alheamento no interior da narrativa e representa, desde logo, uma valorização da acção em detrimento da contemplação,  distanciando-se, pois, do sentido originário.  Transpondo para o universo desta  Marta o núcleo duro de seguidores do  Emanuel bíblico (a mãe Maria Nazaré,  Maria Madalena, o grupo dos discípulos),  recontextualizando-os temporalmente a partir de meados do século XX (mas prolongando-os até à década de 90)  e situando-os no espaço mais ocidental da Europa, a ilha das Flores, Álamo Oliveira constrói um romance cuja leitura obriga a um vaivém recorrente  entre o explícito, contemporâneo,  do primeiro plano  e o implícito, remoto,  do segundo plano (isto é, o subtexto evangélico), desafiando o leitor e jogando com as expectativas decorrentes do seu maior ou menor  conhecimento bíblico.  Essa dupla dimensão é atestada desde logo pelo enunciado inicial de cada capítulo, “naquele tempo”, colhido directamente nos evangelhos, e que de forma óbvia contrasta com os signos da contemporaneidade  presentes já na  abertura do romance: “Naquele tempo, Marta de Jesus pressentiu a morte como quem sabe o prazo de entrega de uma encomenda por correio expresso: chega no dia exato e é entregue à porta.” (p. 17).

O leitor terá, pois, ocasião de atestar a convocação  de episódios bíblicos no interior deste romance, de verificar em que medida ela se realiza enquanto repetição e diferença (como é próprio de  procedimentos narrativos e textuais  do género)  e como essas diferenças podem constituir, finalmente, um factor de frustração das  expectativas do mesmo leitor. Narealidade, transpondo para a segunda metade do século XX açoriano e português alguns episódios bíblicos, entre eles o projecto messiânico de salvação política  do país, o autor condena-os desde logo ao fracasso: porque esta não é uma narrativa tocada pela visão e pela perspetiva do milagre (leia-se, por exemplo, o episódio do casamento da filha do Senhor Presidente da Câmara e  a desmontagem da sua  eventual natureza de réplica  do episódio bíblico das bodas de Caná)  e porque a verdade histórica se opõe a uma libertação situada nesse período de tempo (faltavam ainda 20 anos para que isso ocorresse, e não por via de qualquer «missão»  salvífica, mas pela força das armas).

O mundo configurado em Marta de Jesus (a verdadeira) é fundamentalmente  o das Flores, um mundo rural em queda, social, económica, sem sinais de redenção à vista;  e a utopia de transformação do país a partir desse espaço remoto e graças à acção de um pequeno grupo como o de Emanuel Salvador e seus seguidores, essa utopia, dizia eu, não passa disso mesmo e acabará por tropeçar nas contingências do próprio tempo, sem que tenha qualquer efeito prático o papel de mentor ideológico desempenhado a partir de Lisboa por Pedro (o intelectual saído  das Flores tempos antes). A pretendida  viagem  de libertação rumo à capital  é atalhada por intervenção brutal de um tribunal de excepção (tribunal plenário?) constituído à pressa na cidade da Horta para julgar os rebeldes;  e, mesmo que chegue a desembarcar em Lisboa, o grupo já estará decapitado do seu líder, Pedro terá desaparecido misteriosamente durante o julgamento e  Judas já terá cortado os pulsos na  Horta, à vista da ilha do Pico (o que sempre é uma forma de, graças à  paisagem,  suavizar  o remorso de ter vendido o Mestre por 30 contos).

“Naquele tempo, não havia epílogos”, escreve o autor (p. 213). E se é verdade que,  após a tentativa de intervenção na política portuguesa (uma espécie de golpe das Caldas com origem na placa tectónica americana), “a ilha das Flores nunca mais fora a mesma” (p.209), ganhara visibilidade mediática  (diríamos hoje), também é verdade que continuou a sangria  migratória,  Marta viu a ilha esvaziar-se em direcção a Oeste, obviamente,  como sempre: “Daí para a frente, começaram a gerir a tristeza” (p. 210) e  nem mesmo as transformações decorrentes do golpe de abril de 74 e a instituição de um governo regional foram capazes de colocar as  esperanças da ilha ao mesmo nível das  suas  expectativas.

Aos poucos, “o grupo dos anos 60” foi-se desfazendo,  em boa parte pelas américas de maior ou menor abundância. Dos outros,  Pedro, libertado do Tarrafal em 1974 para onde, afinal, fora atirado, morre desencantado com a política, após a fracassada experiência com o partido que fundara; a morte de Marta desencadeia uma série de fenómenos cósmicos que anunciam o fim das coisas. Emanuel morre tranquilamente por obedecer de forma excessiva a uma ordem de  João, o discípulo amado, que apenas o mandara dormir; o próprio João, ameaçado de internamento na Casa de Saúde de São Rafael, escapará a esse desígnio graças a ao Padre Vieira, mas acabará a vaguear pelos caminhos em trajes menores, mesmo depois de a governação das ilhas ter mudado de partido.

Na outra  leitura  que este  romance suscita, a  de um segundo plano  de significação para lá do imediatamente descodificável,   Marta de Jesus (a verdadeira) pode ser considerado  uma parábola geral  sobre um tempo português e mais especificamente açoriano,  cujos limites iniciais   ficaram devidamente assinalados. O  período configurado no livro de Álamo Oliveira é, efectivamente, assinalado por dinâmicas colectivas e sociais que muito devem a quem ousou sonhar outra coisa para o destino insular, num gesto de intervenção cívica e cultural que visava a ultrapassagem do marasmo e do conformismo; por via diferida,  Marta de Jesus (a verdadeira) ficciona esses ensaios de transformação e também o seu fracasso, os bloqueios institucionais que se lhes antepuseram, baseados numa suspeição que, sendo a de um momento determinado, é por extensão e norma o timbre dos que  olham o espaço insular  a partir da beira-Tejo e que através dos  mandantes locais tendem a manter  a rédea curta às suas populações. Se Marta de Jesus (a verdadeira) constitui, por outro lado, uma espécie de balanço do grupo e dos Açores dos anos 60, lidos à luz de hoje, então é um balanço cujo teor deceptivo e desencantado a ironia envolve   num discreto manto de melancolia: recusando o cinismo, ela assinala, ainda assim, a consciência romanesca de que nem tudo se perdeu e que o futuro foi,  de algum modo e apesar das desilusões, o fruto dessas sementes lançadas ao chão insular num tempo ainda não preparado para recebê-las.

Para lá de todos os jogos de (aparentes) avanços e recuos sociais e políticos, restam os livros e os autores, e o romance  de Álamo Oliveira é também uma homenagem aos escritores florentinos em particular, porque,  mesmo quando não totalmente compreendidos   (pense-se na reacção de Madalena à leitura de Almas Cativas pelo filho), os livros são esses manuais de sobrevivência que ensinam a conviver com  a solidão e a vencer  o confinamento insular e as suas margens de água. Seja lá onde for, a  literatura ensina a morrer, poderia dizer Marta citando Umberto Eco. E isso é ainda uma forma de organizar a relação do homem com o tempo e o espaço e com os outros. E de viver.

Urbano Bettencourt, poeta e ensaísta

Prefácio a Marta de Jesus (a verdadeira). Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2020

No ano em que celebra 80 anos de vida e de palavra, Álamo Oliveira é homenageado pela plataforma Filamentos e pelo Instituto Português Além-Fronteiras (PBBI) da California State University, Fresno, através de uma série de crónicas que evocam o poder da sua escrita — profundamente enraizada nas ilhas, mas aberta ao mundo. Reunindo reflexões e depoimentos de autores e académicos de várias geografias, esta iniciativa propõe uma leitura plural e afetiva da obra de um dos grandes nomes da literatura açoriana contemporânea, cuja voz, feita de memória, humanidade e resistência, continua a iluminar o nosso tempo.

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