De uma experiência poética de Gervásio Lima por Victor Rui Dores

Com 45 publicações editadas em vida, Gervásio Lima (1876-1945) foi um dos mais fecundos escritores açorianos da sua época. Com coordenação minha, todos os seus escritos estão agora compilados em Gervásio Lima – obra reunida (Instituto Histórico da Ilha Terceira, Nova Gráfica, 2025), em dois volumes, com cerca de 2.000 páginas.

Desprovido de títulos académicos e exemplo de autodidata, este terceirense dedicou-se à investigação histórica, ao jornalismo, à poesia, ao conto, à monografia, aos estudos etnográficos e ao teatro. O seu patriotismo exacerbado, aliado a um amor desmesurado pela ilha Terceira e a um discurso fortemente nacionalista, levaram-no a ser pouco rigoroso, deixando-se levar pela imaginação.

Possuidor de um estilo francamente hiperbólico, foi poeta ultrarromântico. E, nesta matéria,há uma originalidade neste “lírico que se perdeu a querer ser historiador” (no dizer de Pedro da Silveira). Trata-se de uma experiência poética, tanto quanto julgo saber inédita e sem precedentes na literatura portuguesa: este autor conseguiu a proeza de, para cada um dos cinco sonetos por si escritos e abaixo mencionados, não ter utilizado nenhuma das vogais. Vejamos:

DESEJO LOUCO

(sem a vogal A)

De que serve o dinheiro —o lodo vil, imundo,

Se tudo o que ele oferece é breve e fugitivo!…

De que serve o desejo—esse gozo jucundo,

Dum momento feliz, contente, redivivo?…

Que serve revolver o mistério do mundo…

Ver, inquirir o Ignoto e ler o sensitivo?…

Se o espírito nos foge, e num fosso profundo,

Se submerge e esconde o conjunto expressivo?…

O homem — esse rei embevecido em ouro,

Irónico erudito, em frémitos de luz,

Insecto pequenino envolto num tesouro,

Quer ver e compreender tudo isso que seduz;

O insciente que tremeu vendo o menino louro

Nesse bercito humilde onde sorri Jesus!

HARMONIAS

(sem a vogal E)

Com vívido fulgor, os astros diamantinos,

Sorrindo, a fulgir, lá na amplidão azul,

Vão abraçando o mundo a ósculos divinos

Dando aromas à flor na radiação taful.

A morna brisa agita os lagos cristalinos,

Açouta o largo mar, o plácido paul;

Nos prados há rumor, sussurros matutinos,

Maga coloração alcança o pólo sul.

Hino rubro da luz, cavatinas do Amor,

Vão as auras subtis, ora amando, ora rindo.

Da larva inactiva à asa do condor

Tudo chora, ama, ri, no labirinto infindo;

Uma incógnita mão conjuga o riso, a dor…

Alto conjunto, sábio… harmonioso… lindo!

CONTRASTE

(sem a vogal I)

Numa bela manhã de Agosto, perfumada,

Um pequeno folgava ao longo do seu lar;

Passava além no espaço a alegre passarada,

E, perto, a seus pés, o gemebundo mar.

Por sobre a tela, o Sol, derramando o calor,

Era como um botão de luz, de fogo ardente,

A acalentar o mundo, a despertar o amor

Em tudo quanto pensa, em tudo quanto sente.

Olhando o vasto mar, esse lençol das águas,

Um velho, já tremente, afagava a lembrança —

Reflexo da saudade, envolta em fundas mágoas.

Do tempo que passou, do belo tempo ameno:

“Quantos jazem além daquelas duras fráguas!”

“Tanto ouro no azul!” pensava então o pequeno…

HUMILDADE

(sem a vogal O)

Caía mansa a chuva. Além dessas campinas

A paisagem é triste, a planta lacrimeja…

Tremem na verde rama as aves pequeninas,

A ventania agita a cruz da branca igreja

.

Vem carregada a treva; as luzes vespertinas

Fenecem devagar, evitam que se veja

A pastagem amiga e as alvuras divinas.

Nem Estrela nem Lua pela treva lampeja.

Sinistra tempestade alcança a cabaninha,

Albergue de miséria e de nudez tamanha…

Que a iluminá-la tem a lâmpada vizinha,

Da ermida que se ergue em cima duma penha.

Unidas, a rezar, uma velha e a netinha,

Bendizem essa luz que a palidez lhes banha!…

PRIMAVERA

(sem a vogal U)

Como é bela a manhã do poético abril!

Flores em cada peito, aroma em cada flor…

Como é linda a campina, o sorriso gentil

Da pradaria verde a conversar de amor!…

Abelhas d’oiro vão, aos pares e às mil,

A borboleta leve e o alado cantor…

Há risos nos pombais, baladas no redil;

Há harmonia na onda e há canções na cor.

Descerra, o forte tronco, a seiva recolhida,

Ascende para o Sol a tenra folha d’hera,

Foge dele, a violeta, agachada, escondida…

Bale a benigna ovelha e brame a tosca fera…

Como se branca mão, a repartir a Vida,

Amalgamando o Amor fizesse a Primavera!

Como diria o jornalista Fernando Pessa: “E esta, hem”?

                                                                                                                                                                Victor Rui Dores, poeta

Leave a comment