Mãe de Pedras, Avelina da Silveira por Paula de Sousa Lima.

Este romance de Avelina da Silveira vem, certamente, consolidar a voz de uma escritora que só há pouco se começou a destacar no nosso meio literário. Embora a autora tenha publicado consideráveis títulos, não tem ainda o merecido reconhecimento na sua/nossa terra, o que, certamente, virá a mudar.

Avelina da Silveira apresenta-se a si mesma não como escritora, mas como alguém que conta histórias, fazendo-o numa linguagem apenas escorreita, e do livro diz que se trata de “ficção especulativa”. Quanto à primeira consideração, discordo da Avelina, pois quem escreve uma história aliciante e bem estruturada, ainda que numa linguagem apenas escorreita (o que, nos dias que correm, já é muito), deve afirmar-se como escritora. De facto, ser escritor/a não é necessariamente desfiar metáforas ou fazer da obra um local de complexidade: há escritores que burilam mais a língua e que a inovam, e isto é louvável, mas também há os que usam a língua com simplicidade para narrar histórias cativantes, e isto não deixa de ser também louvável. Quanto à segunda consideração, confesso que sei hoje o que é “ficção especulativa” porque a Avelina mo explicou. Creio, porém, que o romance Mãe de Pedras tanto vale contextualizado nesse tipo de ficção como fora dela, isto é, este livro vale por si, enquanto literatura, pela história que desenvolve e que nos envolve.

Na contracapa do livro lê-se que “esta é uma história apelativa, o tipo de romance que manterá o leitor acordado a ler muito depois da hora de deitar.” Esta afirmação não podia ser mais justa e verdadeira. Confesso que foi assim que li o romance, deliciando-me com o desenrolar muito bem urdido de uma história “ousadamente feminista”, como também se lê na contracapa.

Dividido em quatro partes, adentro das quais se sucedem trinta e dois capítulos, o romance anuncia-se com um suposto excerto de um “manual de ensino do ano 2387”. Tal excerto remete, de imediato, a obra para um futuro imaginado, o que poderia resultar em ficção científica, mas não resulta – resulta numa utopia com contornos épicos. O futuro apresentado, porém, é uma criação ficcional tão criativamente imaginada e com tal consistência que nos faz crer que tem efetivamente fundamento científico. Antes de prosseguir, quero chamar a atenção para o excerto que anuncia o livro, pois ele dá início a Mãe de Pedras de forma particularmente bela, fazendo eco do Génesis, referência oportuna, pois a primeira parte do romance é também a de um tempo inicial com contornos míticos: “No princípio, as pedras eram mágicas. A primeira Mãe de Pedras era conhecida por muitos nomes e ela percorreu a terra num tempo chamado Mesolítico.”

Assim, o romance não entra abruptamente no futuro, antes, na primeira parte, convoca um passado longínquo, sedimentando uma espécie de atemporalidade da figura destacada: a Mãe de Pedras. A narrativa referente a este primeiro período, o do Mesolítico, que ocupa toda a primeira parte, é feita de pormenores de tal forma precisos que nos faz crer estarmos no tempo evocado. Aí começa a saga de mulheres dotadas de poderes que lhes são conferidos por certas pedras (mágicas?), sofrendo, em contato com tais pedras, uma transformação física de despojamento (até do cabelo), à qual se associam poderes vários, como a longevidade, a inteligência incomum e a capacidade de tirar a vida de outras pessoas. A força de vontade e a capacidade organizativa são outros atributos destas mulheres, que lhes servirão para virem a modificar o destino da humanidade, o que se verifica no final do romance, pela capacidade estratégica da Mãe de Pedras (líder da organização Talea, organização feminina/feminista mundialmente poderosa), nascida no século XX, mas que atravessa quatro séculos.

A segunda parte da obra abre com a presença da açoriana Sofia, mulher aparentemente comum, que não sabe ser da linhagem da primeira Mãe de Pedras e que, confrontada com o desafio de cumprir o seu destino, o aceita de livre vontade. Depois de sujeita à transformação por via das pedras, amuleto que todas as mulheres da organização Talea trazem consigo, Sofia vai, paulatinamente, inteirando-se dos meandros desta organização exclusivamente feminina, cujos ínfimos e verosímeis pormenores são apresentados ao longo do romance. A protagonista, auxiliada pelas suas subordinadas e amigas, pois o romance é também um hino à amizade, procurará forma de modificar totalmente o funcionamento das sociedades do seu tempo, e este é alargado, pois ela vive 400 anos. O móbil para esta demanda é a violência de muitos homens para com as mulheres e, em última análise, a inata e nefasta agressividade masculina, responsável, segundo o romance, pela decadência da civilização, cujos aspeto mais visíveis são as guerras e o sofrimento das mulheres às mãos de homens cruéis.

Mercê de uma série de deliberações, algumas implacáveis, da Mãe de Pedras, depois de quatro séculos, acaba por se estabelecer uma nova ordem mundial, onde têm clara primazia as mulheres e os sentimentos de empatia, amor e tolerância que lhes são próprios. Assim, tal como antes afirmei, este romance de Avelina da Silveira impõe-se como uma utopia, dado apresentar um projeto social e político próximo da perfeição. A obra apresenta igualmente contornos épicos, pois, tal na famosa Odisseia, é necessário ultrapassar muitos obstáculos e sobreviver ao sofrimento para se chegar a Ítaca. A Ítaca de Avelina da Silveira é a que encontramos no final do romance – um planeta apaziguado, feliz e justo. Um planeta que assim é porque as mulheres lutaram por ele, tal luta a Avelina, cidadã exemplar e escritora distinta.

                                                                                    Paula de Sousa Lima, 11/04/2025

Em breves dias este magnífico texto de Paula de Sousa Lima será publicado em inglês, já que o livro da Avelina está disponível nas duas línguas.

Podem encomendar o livr através da Amazon:

Leave a comment