Dias de Melo-Centenário (texto do nonagésimo-sexto aniversário escrito por Santos Narciso)

Quando penso em Dias de Melo, não consigo dissociar duas imagens que para mim são a marca deste grande escritor: a majestade do Pico e os mistérios do mar.

E porque quem deixa tão grande obra simplesmente não morre, é já no dia 8 deste mês de Abril que se assinala o 96 aniversário do seu nascimento, a passos largos para o seu centenário.

Pela paixão que tenho por este escritor açoriano, desde 1967, não poderia escolher outra referência para esta página das Leituras do Atlântico, tanto mais que ainda há dias estive a reler as mais recentes edições de algumas obras do grande escritor picoense, que eu não possuía, nomeadamente Pedras Negras, Mar pela Proa, Mar Rubro e A Montanha cobriu-se de Negro, editadas pela VerAçor e que me foram oferecidas pelo meu Amigo Fernando Ranha.

Do escritor Dias de Melo, o primeiro livro que li, comprado na livraria da Loja do Adriano, em Angra do Heroísmo, em 1967, com o meu colega e amigo, Manuel da Silva Azevedo, picoense de gema, dali de São Caetano, a dizer-me compra que vais gostar, foi o Pedras Negras. Ainda tenho esta edição, com carinho guardada, tal foi a força que senti, ao ler e apaixonar-me pelas grandes aventuras baleeiras, pelos grandes dramas da ilha (Pico), pelas presenças e ausências, sucessos e escravidões, como só Dias de Melo era capaz de narrar.

Mais tarde, em 1973, conheci pessoalmente Dias de Melo, na redacção do jornal Correio dos Açores, onde comecei a trabalhar. O escritor mantinha no jornal chefiado pelo grande jornalista Manuel Ferreira uma coluna intitulada, Fumo do meu cachimbo. A sua leitura fez dobrar em mim a admiração por Dias de Melo, de tal forma que ainda hoje, a par de Daniel de Sá, é dos escritores açorianos que mais leio, sem nunca me cansar, tal como com a nova geração me não canso com Joel Neto ou Pedro Almeida Maia.

Dias de Melo, falecido em 2008, tem cerca de 30 títulos editados em quatro décadas que passam pela poesia, narrativa, conto, crónica, romance, monografia, etnografia e novela e em todos os géneros conseguia uma força, um realismo e um cunho pessoal que não deixam ninguém indiferente. Se em Daniel de Sá eu admiro e respiro a calma da profundidade narrativa e dialogante, em Dias de Melo quedo-me perante a contínua angústia existencial que se bebe em cada capítulo dos seus livros, autênticos libelos contra a injustiça e a desigualdade que nos levam a não saber, nos seus contos e romances, qual a linha que separa a realidade da ficção, e onde começa a denúncia e acaba o desabafo.

Dias de Melo era um baleeiro da escrita, sem medo nem falsos pudores, dizendo claramente daquilo que gostava e aquilo que detestava. Dele escreve Daniel de Sá, no prefácio da 4ª edição de Mar pela Proa (Ver Açor Editores, Abril de 2008, cinco meses antes da morte do Autor): “O remo que Dias de Melo não usou por profissão terá feito falta na vida dos baleeiros do Pico. Alguém o terá manejado por ele. Mas a sua escrita não poderia ser substituída por nenhuma outra, por nenhuma de outro. O melhor da saga de um século ter-se-ia perdido. A maior parte da vida vivida na terra e no mar pelos seus baleeiros, que ele fez nossos, teria morrido na sua morte. Mas, de cada vez que abrimos um livro de Dias de Melo, de cada vez que voltamos às páginas deste Mar pela Proa, como às pedras que ele escreveu em negro ou às águas que pintou com o sangue rubro das baleias, sentimos que eles vivem, os baleeiros. E as suas viúvas e os seus órfãos. Nenhum baleeiro de Dias de Melo será jamais enterrado no chão do esquecimento. Ele garantiu a todos a perenidade da vida na memória das gentes”.

Lapidar, como só Daniel de Sá saberia resumir, em poucas linhas, a imortalidade de tão grande escritor açoriano. De facto, se olharmos para a nossa volta, muitos ciclos de vida, em todas as nossas ilhas, foram desaparecendo, quase sem deixar rasto. As grandes aventuras da produção e exportação do pastel, da espadana, dos cereais, da laranja e do ananás, a própria baleação que houve em quase todas as ilhas dos Açores, tudo isto se sumiu um pouco porque não houve um Dias de Melo que alcandorasse à categoria de epopeia aquilo que se foi passando e vivendo nos Açores. Nas ilhas do Triângulo, com expoente máximo no Pico, Dias de Melo conseguiu que a memória tão recente da baleação rapidamente se transformasse em património regional e universal.

De tal modo que, passados alguns anos, outras ilhas vão despertando para o mesmo interesse, agora voltado para a exploração turística e recreativa.

Atrevo-me, por isso, a dizer que Dias de Melo é salutarmente responsável pelo interesse histórico e social que tem rodeado todo este processo de imortalização da arte baleeira nos Açores. Mas este não era o objectivo principal do escritor. Dias de Melo foi, acima de tudo, um lutador contra as injustiças, contra a escravidão social que se vivia nas ilhas, na terra e no mar. Quem como ele descreve as desigualdades entre patrões e empregados? Os que escravizavam e os que acolhiam, que também havia gente com coração. Dias de Melo exalta como ninguém a dignidade dos pobres, aquela dignidade que não se verga, nem nas grandes fomes, nas duras secas e nas longas invernias de pão duro e peixe salgado.

É preciso levar mais Dias de Melo às escolas, porque pela sua escrita passa a imagem das ilhas que tem de ser conhecida para que a actualidade possa ser compreendida e reconhecida, porque muito do que hoje se vive advém da coragem daquilo que se pode chamar de “literatura da angústia e da denúncia” que tocou muitos escritores açorianos e de que Dias de Melo é um dos mais lídimos exemplos. Esta a melhor homenagem que se pode prestar ao grande picoense que de forma sublime cantou a majestade do Pico e os grandes mistérios do mar das Ilhas!

Santos Narciso, jornalista/escritor

Foto: VerAçor Editores

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