
Anda um poeta à solta na ilha em “permanente folia” (Terceira), de seu nome Carlos Enes.
Este historiador já havia dado boa conta de si no romance, Terra do Bravo (I.A.C., 2005), e na poesia, Cicatriz da Chuva (I.A.C., 2016). Reincide agora com Infinito sem nome, (Letras Lavadas edições, 2025) que acabo de ler. Fica-me, da leitura, a impressão de que há uma memória indelével e retroativa que escreve Carlos Enes: a do menino que, da janela virada para o mar, se põe a adivinhar, com os olhos encharcados de luz marítima, horizontes, distâncias e promessas de outros mundos para além da ilha.
A ilha e o mar são o epicentro do imaginário deste terceirense, isto é, o seu roteiro sentimental e afetivo, que aqui funciona como desejo de aventura, aspiração, fuga e viagem. Poética da ilha, é certo, mas que não se deixa enredar nas malhas de um certo impressionismo contemplativo da paisagem insular, pois que esta poesia descobre no mar a essência da visão do mundo.
Num discurso poético marcado em boa parte por um realismo urbano que faz da enumeração e da justaposição discursiva uma das técnicas de convocação de um tempo suspenso, o poeta (re)visita lugares e momentos fugazes, fixando emoções, sensações e estados de alma.
Poesia de circunstância? Toda a poesia é de circunstância. É só preciso que as circunstâncias sejam as do poeta: a circunstância exterior deve coincidir com a circunstância interior, como se o poeta a tivesse produzido.
Nesta ordem de ideias, é de circunstância o livro em análise. De circunstância porque forjado à luz da observação do real, do vivido e do sentido, num jogo do mítico e do simbólico.

Carlos Enes é poeta de apreciáveis recursos sensoriais e de sinestesias, digo, poeta de cheiros e sabores (cf. os poemas “Infinito sem nome” e “Mesmo sem ti”, por exemplo), um poeta que, conversando e desconversando, moendo e remoendo incessantemente as palavras, perscruta o quotidiano das coisas, não como realidade pacata, mas como reflexão e ironia (cf. “Quietude inquieta”, excelente poema).
Viandante anónimo, o sujeito poético colhe impressões e procura na viagem não o destino, mas a sua própria natureza. Preocupado com o curso da existência humana no palco do mundo e a contas com a solidão e a ausência, perdas e desenganos, combate a simplificação hipócrita da vida, buscando decifrar o enigma dos dias.
Para tal, denuncia as verdades ilusórias e renuncia às máscaras de um quotidiano alienante. E faz do poema o lugar de um confronto (cf. o poema “Despudor das sotainas” sobre os abusos sexuais de algum clero).
É sabido que os poetas têm razões que a razão desconhece. Profanadores de todos os saberes, eles sabem que as palavras se corrompem no comércio quotidiano das gentes. Por isso recuperam, devolvem, transfiguram e subvertem essas palavras. Porque sabem que a poesia não explica, implica; o poema não afirma, sugere. O significado da imagem poética remete-nos sempre para um esfíngico segredo e para uma forte ambiguidade. Nesta perspetiva, a poesia será sempre uma tentativa de compreender o incompreensível.
Ao leitor é lançado um desafio: o de descortinar o lado de lá da neblina do verso. Isto é, ele terá de ser capaz de decifrar e descodificar o(s) sentido(s) do poema, para que assim aconteça a fruição do texto. Ao poeta cumpre o ofício de lapidar a palavra única, exata e essencial e nela encontrar os ritmos e as pulsações, os silêncios e as sonoridades. Sendo um (incansável) trabalhador da palavra, ele não deixará nunca de observar o real e dissecar a sua vida (a sua alma) – como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade…
De resto, a poesia é tanto mais importante quanto mais se confunde com a vida. E, em Carlos Enes, há uma íntima ligação entre a vida e a escrita. Ou seja, a integridade da vida do real, a sua essência infinita e concreta que o habita, assombra e renova.
Infinito sem nome é um livro de olhares cruzados e memórias soltas. O poeta navega sonhos e memórias porque sabe que só o sonho pode dar sentido à vida. Por outro lado, essa viagem é também a viagem do corpo. Buscando o inatingível e aspirando ao impossível estado de alma, o poeta questiona a sua vida, a banalidade dos dias e exalta a pulsão erótica do desejo, a busca do amor não como um sentimento absoluto, mas como algo sempre em visita, platónico ou interiorizado, pressentido ou irremediavelmente perdido. E tudo isto nos é dado em poemas bem urdidos e carpinteirados.

Victor Rui Dores, poeta com vasta obra publicada. Para além de poesia, publica ensaios, crónicas, crítica literária e ficção narrativa.
Vive na cidade da Horta.
