A nossa homenagem ao poeta Emanuel Félix continua com um magnífco texto do poeta Victor Rui Dores.
Emanuel Félix – Poeta da Terceira e do Mundo

Mantive uma longa relação de amizade e de camaradagem poética com Emanuel Félix (1936 – 2004), poeta modelar, discreto, exigente e fraterno – meu “maitre-à-penser” que não esqueço.
Não sei se por ele ter vagas parecenças fisionómicas com Albert Einstein, a verdade é que sempre pressenti em Emanuel Félix uma áurea centelha de génio… Terceirense até à medula, tratava as pessoas por “meu amigo” e nunca conheci homem mais verdadeiro e natural, dotado de uma tão grande generosidade e de uma ilimitada modéstia. Por tudo e por nada dizia:
– Vocês desculpem…
Senhor de várias artes e múltiplos talentos, Emanuel Félix foi (é) um grande poeta. Um poeta de cultura(s) – e não desses que andam por aí e que usam flores na lapela e ostentam brincos semióticos… Ele foi também intelectual, ensaísta, professor, autor de crónicas e de contos, psicopedadgogo, crítico literário e de artes plásticas, desenhador, tradutor, pintor, museólogo, conferencista, especialista em restauro de obras de arte… e tudo. (Em tempos de grandes mudanças sociais e outras convulsões políticas, assumiu, em 1974/75, funções de presidente da comissão administrativa do município angrense).
Estudou em Paris, Anderlecht e Lovaina e estagiou em museus e em diversos institutos de restauro científico de obras de arte, designadamente em Ruão, Bruxelas, Liège, Londres, Roma e Florença.
Foi esta mundividência que ajudou a universalizar a poesia de Emanuel Félix, considerado (por José Blanc de Portugal) um dos pioneiros do concretismo poético em Portugal, embora logo o abandonasse para se dedicar a uma arte mais próxima do surrealismo. Experimentalismos à parte, a sua poética evoluiu depois para uma poesia depurada, de envolvente fascínio e de uma grande beleza plástica, que nos fala de fragmentos da vida vivida e da vida sonhada – em poemas de uma permanente e perene modernidade. “Five o´clock tear”, “Apelo de urgência”, “Pedra – poema para Henry Moore”, “Para Joana” ou “As raparigas lá de casa”, por exemplo, são construções poéticas que valem por toda uma literatura.
Emanuel Félix é poeta do amor e da amizade, da viagem e da aventura, do mar associado à fertilidade, da ilha e do mundo e da reflexão sobre a existência humana. Influenciado por Apollinaire, Baudelaire, Mallarmé, Paul Eluard, ou por Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto, a sua poesia é também um vivo testemunho social.
Já o escrevi noutro lugar referindo-me à qualidade e à beleza formal da poesia de Emanuel Félix: neste autor, o poeta e o restaurador trabalham em perfeita sintonia e harmonia. E isto porque o poeta assume o ofício de artesão de palavras, esculpindo-as e lapidando-as até à sua (possível) perfeição, com o mesmo amor e do mesmo modo com que o restaurador trabalha os materiais.
Precisamente porque possuidora e portadora de uma vocação universalista, a poesia de Emanuel Félix parte da ilha e projecta-se em espaços do universal, isto é, viaja por todos os portos, sabe todas as filosofias, conhece todas as civilizações, acolhe todos os artistas plásticos (Miró, Lurçat, Laurence Caleghari, Arp, Henry Moore, Picasso…), compreende todas as mitologias, convive com todos os povos, acompanha todos os tempos.
Emanuel Félix atribuía esta capacidade de se ser universal à nossa vivência insular. E lembrava-nos sempre aquela história de um terceirense em Paris e que ele contava da seguinte maneira:
Oriundo da Terceira, onde durante a vida inteira fora pescador, o sr. José Jacinto, já reformado, quis mudar de ares: deixou a sua ilha e fixou-se em Paris. Aí se tornou pessoa respeitada, tornando-se inclusivamente amigo íntimo do editor Bayard e, por isso mesmo, passava muitas tardes na Livraria Bayard.
Ora, um dia, encontrando-se em Paris, Emanuel foi à dita Livraria e aí conheceu o seu conterrâneo José Jacinto. Trocaram impressões e, a páginas tantas, pergunta o poeta com curiosidade:
-O sr. José Jacinto vai desculpar-me, mas diga-me cá uma coisa: o meu amigo quando chegou aqui a Paris, já a rondar os 70 anos de idade, não sentiu dificuldades em se adaptar a este ritmo de vida? E depois não sabendo falar francês, como é que o meu amigo conseguiu desenrascar-se com a sinalização e os nomes das ruas? Deve-se ter perdido muitas vezes nessas avenidas, não?
O sr. José Jacinto vira-se para Emanuel Félix e, meio “picado”, responde:
-Ó sr. Emanuel! Eu andei muitos anos no mar. O mar é muito maior que Paris, não tem nada escrito e eu nunca me perdi…
Emanuel Félix, poeta do inefável, desafiou-nos a encontrar as palavras “certas, insubstituíveis, insubmissas” e alertou para as facilidades da espuma dos dias…
É preciso continuar a ler Emanuel Félix – poeta açoriano de Portugal, da Europa e do Mundo.
Victor Rui Dores
