
(imagem de Alfred Lewis-criação artística da poeta RoseAngelina Baptista).
O ÚLTIMO OLHAR DA SAUDADE
Eduardo Bettencourt Pinto
It is notorious that the memory
strengthens as you lay burdens upon it,
and becomes trustworthy as you trust it.
Thomas De Quincey
Depois de se estar com amigos, custam, são amargos os momentos que se passam no aeroporto. As despedidas matam sempre um pouco o coração. O Tempo, parado, gravita como uma pedra sem peso. E no entanto, quando o Sol californiano mordia os vidros, e o silêncio, exausto, me caía aos pés, era só abrir o saco e tirar um livro. Libertava-me assim da melancolia, embrenhando-me noutra realidade.
Entretanto o bi-motor chegou. Minutos depois viajava nele para S. Francisco. Pequeno, trepidava como uma gaivota. Num instante Fresno desaparecia da minha janela. Fechei então os olhos, cansado. Só despertei quando o avião, baixando, se fazia à pista.
Após uma longa caminhada, e de ter passado, descalço, diante do olhar atento da segurança, fui direito à porta de embarque. Foi então que pude, descansado, abrir o saco de mão.
Mas só quando atravessava as nuvens de S. Francisco, de regresso a Vancouver, comecei a ler a poesia de Alfred Lewis.
Poesias, de Alfred Lewis,abre com um belo e muito informativo texto de Donald Warrin, a quem se deve a fixação dos textos, seguido de outro de Artur Ávila. Por fim, uma comovente Breve Autobiografia, escrita por Alfred Lewis e que antecede a sua crónica A Partida, fechando assim a primeira secção do livro.
Avancei pelas páginas aliciado, desde logo, por uma empatia e uma emoção: ao descrever os pormenores da sua despedida no dia em que deixava a casa paterna, Alfred Lewis avivou-me o dia em que eu, deixando os meus pais e a família mais próxima, saí de Ponta Delgada para me radicar no Canadá. «Trouxe comigo um maço dos meus próprios versos ¾ escreve o poeta na Breve Autobiografia ¾, (num saco de chita cosido pela minha mãe), e um ingrediente invisível que não me abandonaria durante o exílio, sempre ao lado: uma profunda saudade pela terra do meu berço, por tudo que aí conhecia e amava».
Um texto, qualquer texto, deve ser analisado friamente. A prosa e a poesia de Alfred Lewis têm, porém, um timbre tão pungente, tão carregado de nostalgia, que é difícil sair-se, incólume, da sua irradiação. Essa predominância emocional, esse carregado estado de espírito reflectem o abalo que resultou de uma grande intimidade com a génese do que foram as experiências e os dilemas por que passou. Uma «viagem ao contrário», como nos propôs, e muito bem, Manuel Ferreira Duarte. Tamanha intensidade dirige-nos à exegese dos seus mais íntimos ecos. Obriga-nos, em suma, a uma leitura contextualizada e de recurso aos afluentes emocionais do poeta, à sua vivência ilhoa, matriz da qual nunca se conseguiu evadir.
Mesmo que voluntária, a saída de Alfred Lewis das Flores, sua Ilha natal, marcou-o profundamente. Vindo de uma família pobre, as suas aspirações foram de um dia partir para o Novo Mundo. O pai andara por lá. Regressara, é certo, mas as suas histórias de abundância e largueza de horizontes instigaram no jovem A. L. não só uma incontornável curiosidade, como lhe alimentaram a esperança de uma qualidade de vida material impossível de alcançar nos limitados horizontes da sua Ilha. Os pais, sem recursos, acabariam por se desfazer de uma terra de modo a poderem custear a passagem ao obstinado filho. Nos anos da velhice, o poeta regressa ao drama entretecido nas teias dos últimos momentos na Ilha, ao último olhar, às finas películas de humidade que nele ficaram, para sempre, presas à íris como um diadema, testamentárias daquilo que foi a sua vida, o mundo que nunca deixou de existir no seu subconsciente e na sua alma sensível.
Perdido nas imensas planícies solares da Califórnia, o poeta jamais voltaria a ver os pais e a sua amada Ilha. Encontramos razões para acreditar que o centro fulcral deste livro tenha sido uma tentativa de A. L. recuperar emocionalmente tudo quanto deixou atrás. Partindo do princípio que à palavra é dado o privilégio de recuperar mundos perdidos ( e inventar outros ), Alfred Lewis entregou-se, íntegro, total e com grande honestidade a esses meios catárticos e libertadores. Caindo a sua poesia por vezes no evitável espelho do sentimental, algo descritivos e sem qualquer suporte metafórico e mítico, são contudo testemunhos pictóricos e intensos de um tempo. Demonstram sobretudo que não há solução plausível para o drama que é viver-se com um pé na América e outro no interminável mar da saudade. As palavras, para Alfred Lewis, foram bóias salvadoras do espírito e a reconstrução dos seus derrubados templos.
Nunca se está num lugar a tempo inteiro. O subconsciente, a alma e as empatias são um barco que viaja, sem interrupção, na memória, até ao princípio do Tempo, até ao encontro das raízes. Os símbolos desse percurso emocional ( no caso A. L., sobretudo) nutrem-se do sangue das ondas, do cheiro a peixe escamado, da sombra fresca das árvores e dos pequenos rituais do quotidiano. Paraíso perdido e irrecuperável, a Ilha de Alfred Lewis legou-nos, através do seu pulso, uma poesia do imponderável. Fugir, esconder, ignorar a vivência insular seria renegar o rosto, o passado, os mortos, os nomes que continuaram, na sua sensibilidade, vivos e eternizados. Mesmo que só possível no infinito paroxismo do espírito. A busca do essencial, infelizmente tão disperso nos mil rostos da ansiedade humana, deseja igualmente o equilíbrio da harmonia e o Éden genesíaco que se foi de nós para sempre.
O vertiginoso correr dos dias, que tão inequivocamente delimitam a efemeridade da vida, torna tudo relativo. Nas palavras de Alfred Lewis a tensão, a inquietude e a saudade do que é irrecuperável ficou profundamente marcada essa evidência.
We thank the Luso-American Education Foundation for their support.
