Alfred Lewis – Uma alma atlântica em terras californianas (An Atlantic Soul in California Soil)

(imagem de Alfred Lewis-criação artística da poeta RoseAngelina Baptista)

ALFRED LEWIS:

POETA DA ILHA DAS FLORES

José António Corvelo

O século XX já pertence ao passado. Nós fazemos parte desse passado e muitos de nós já não tivemos oportunidade de olhar da janela do novo século muitos dos acontecimentos que marcaram esse curto espaço de tempo.

Basta lembrar, por exemplo, que precisamente  em 1900  a exposição de Paris simbolizava o desenvolvimento científico e tecnológico europeus, enquanto em 1901 tinha início a atribuição dos prémios Nobel. Já em 1903, do outro lado do Atlântico, precisamente na Carolina do Norte os americanos Wilbur Wright e o seu irmão Orville realizavam o primeiro voo com um aeroplano.

Pelo meio ficam centenas, senão milhares de acontecimentos que marcaram  o início do século XX, deste e do outro lado do atlântico. Falar deles aqui seria exaustivo e ocorreria de forma despropositada, até porque esse não é o objectivo que nos trouxe aqui.

O que nos trouxe aqui foi alguém que longe das luzes da ribalta, longe dos movimentos que então se faziam sentir na Europa e no mundo, veio a nascer nada mais nada menos que no sítio do Pico Redondo, na freguesia da Fajãzinha, a 30 de Abril de 1902, onde todos nos encontramos. Filho de José António Luís e de Ana Luísa da Conceição, Alfredo Luís cedo começou a olhar o horizonte à procura das Américas que já lhe percorria as veias, não tivesse sido o pai mineiro e baleeiro nessa América que mais tarde o acolheu para sempre.

Um problema de saúde aos dois anos de idade deixou-o com o pé direito algo enfraquecido, tal como narra na sua autobiografia, razão pela qual passava grande parte do tempo sentado, olhando os colegas nas suas brincadeiras, mergulhado nos seus pensamentos, provavelmente  a dar largas à sua imaginação de criança.

Cedo o desejo de se expressar através da palavra escrita foi mais forte que a pacatez da Fajãzinha. (Aqui convém fazer um parêntesis e lembrar sobretudo a quem nos visita, sobretudo a esta nova geração luso americana que a Fajãzinha de há um século atrás era muito diferente daquela que hoje terão oportunidade de conhecer). Provavelmente porque no Pico Redondo  o pôr-do-sol tinha uma tonalidade diferente ou então Alfredo Luís conseguia captar essa tonalidade, a pedido do professor  uma descrição desse mesmo pôr-do-sol mereceu na altura os elogios do mestre. Estava então na quarta classe e a partir daquele momento uma “sede incontrolável de escrever mais” se apoderou  dele e o acompanhou durante toda a sua vida. A par dessa sede de saber e desse forte desejo de transpor para o papel as imagens e factos do seu dia-a-dia, está uma grande capacidade intelectual. No exame de 2º grau tira vinte valores como aliás se pode ler no livro “Aguarelas florentinas e outros poemas” publicado em 1986 pela Direcção dos Serviços de Emigração. Esse e outros factos leva a que várias são as pessoas que se interessam pelo seu futuro, oferecendo-se nalguns casos para custear as despesas com a sua educação. Ainda na Fajãzinha e muito jovem dá explicações à noite a muitos jovens da sua idade ou mais novos o que leva a ganhar a alcunha do “Dr Berlim”. Há ainda quem se lembre dessas aulas e recorde esses momentos.

            Mas, como diz Alfredo Luís na sua autobiografia, “visto que não se pode almoçar um poema e que o pão foi e ainda é um elemento a considerar”, terminado o período escolar e outros estudos particulares com o professor e pároco de então, decidiu-se partir , tal como o seu pai, para o Novo Mundo, a fim de ganhar algumas dessas “águias” que eram tema de conversa na freguesia. Já contava na América com o  seu outro irmão.

Os pais acabaram por vender uma relva, refere Alfredo Luís,  e a sua venda  permitiu fazê-lo chegar à Califórnia. Com ele levou num saco de chita cozido pela mãe, um maço dos seus próprios versos, o coração apertado pela saudade  e no bolso (vejam só!) nada mais nada menos que 75 centavos americanos!

Foi assim que em 1922 chegou à Califórnia, condado de Merced e com a ajuda do irmão acabou por encontrar trabalho. Diz Alfredo Luís que foram tempos difíceis. Levantava-se pelas seis da manhã. Era conduzido até o campo e ali “rastejava como aranha a apanhar os tubérculos, lisos e grandes” de batata doce. Esta experiência não terá sido das melhores o que o levou a decidir-se a partir até São Francisco à procura de emprego. Ali  começou por trabalhar como ajudante de cozinheiro num restaurante português.

Mas, o desejo pela palavra escrita continuava bem vivo e foi assim que um dia um “severo ataque de saudade” leva-o a escrever  para o “Jornal de Notícias”. Foi o primeiro passo para que a sua vida tenha recebido um novo rumo. Convidado então para  trabalhar na “Revista Portuguesa”, tornou-se aprendiz de tipógrafo e durante muito tempo foi o responsável pela sua publicação, até que um dia Artur Ávila, redactor e director na época do “Lavrador Português” que se publicava em Tulare (na Califórnia) convidou-o para trabalhar com ele.  O jornal acaba por encerrar e Alfredo Luís  volta a Atwater onde se emprega numa loja. Meses depois adoece e o diagnóstico não é dos melhores. Foi-lhe diagnosticada uma tuberculose, impondo-se assim uma entrada num sanatório o que acaba por acontecer. Mas nem tudo são desgraças e o período que acaba por ali ficar leva-o a dedicar-se intensamente à aprendizagem do  inglês. Terminado esse período de convalescença  segue a convite de amigos para Los Banos com a promessa de um emprego num escritório de um advogado.

Estávamos em 1930. É também nessa data que conhece uma jovem de ascendência italiana com quem casa. É ainda no final dessa década que cursa a Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, formação essa que o preparou para mais tarde  desempenhar as funções de juiz municipal da cidade de Los Banos, posto que acabaria  por deixar alguns anos depois numa contenda com os vereadores daquela cidade.

Alfredo Luís modesto por natureza, não refere na sua autobiografia o curso que então fez naquela universidade, mas  diz que se tornou “uma espécie de  conselheiro para centenas de portugueses no Vale de São Joaquim, desde escrever cartas, preencher documentos, no intuito de tornar  a experiência desta gente na América tão agradável quanto possível” (palavras do próprio). E porque a escrita estava-lhe no sangue quiçá ainda tocado pelo pôr-do-sol do Pico Redondo da sua terra natal, em 1951 viu publicado em Nova Iorque  e em Toronto o livro “Home is an Island”.

Este trabalho  recebeu excelentes críticas no país, tendo mesmo o suplemento literário do conceituado New York Times afirmado tratar-se de “uma das obras mais notáveis, em língua inglesa, escrita nos últimos anos”. Tratou-se assim,   do relato de tons autobiográficos, “reconstituindo com rara sensibilidade as vivências da infância e da adolescência até ao momento da partida para os Estados Unidos”.

Porém com esta obra que o notabilizou no país que o acolhera duas décadas atrás, não termina a carreira fulgurante de Alfredo Luís. Nos jornais da costa oeste do Estados Unidos, designadamente nos jornais “A Liberdade”, “Jornal Português”, “Jornal de Notícias”,  “O Lavrador Português”, na “Revista Portuguesa” e no “Enterprise”, vê publicados muitos dos seus contos e poemas. Na sua terra natal podemos encontra-los no “Florentino” e ainda no “Diário dos Açores” em Ponta Delgada.

A sua obra poética pode, segundo os críticos na matéria,  dividir-se em duas fases. Por um lado há a do jovem poetando em versos tradicionais e por outro encontra-se a do homem já maduro, compassivo e popular a escrever ora em inglês ora em português. É ainda possível distinguir a influência de vários poetas nacionais na sua obra, como sejam Guerra Junqueiro , Antero ou o próprio Roberto de Mesquita.

E não poderia deixar de aqui referir duas constantes na sua poesia. Por um lado o saudosismo e por outro o amor idealizado. Saudosismo porque apesar de não voltar à ilha, transportou-a consigo, provavelmente nessa saco de chita que a mãe lhe cosera antes da partida, e que está quase sempre presente nos seus poemas. O amor idealizado porque nos leva até  a um amor mal correspondido. E na sua poesia podemos encontrar também a ideia da partida, neste caso a partida sem regresso à sua terra natal.

            Antes de dar por fim a estas duas e modestas linhas que mais não seja pretendem recordar em duas ou três pinceladas quem foi Alfredo Luís mais duas ou três notas que me parecem importantes.

Já em 1975 foi distinguido com o primeiro prémio de poesia do Concurso literário Luso-Americano e, por essa ocasião, a revista da União Portuguesa do Estado da Califórnia publicou-lhe alguns dos seus melhores poemas. A par de outros escritores como Jorge Sena e Onésimo Teotónio de Almeida, o nome de Alfredo Luís figura também na colectânea “Literatura de Expressão Portuguesa nos Estados Unidos”.

Alfredo Luís nasceu pobre a 30 de Abril de 1902. Os seus olhos fecharam-se para o mundo a 10 de Junho de 1977, mas a sua escrita manter-se-á bem viva entre nós. Foi um homem do povo e dos sete ofícios, mas soube manter bem viva e com orgulho essa chama, na terra que o viu nascer e da qual nos devemos todos orgulhar.

Mas melhor que as minhas palavras vou deixar-vos com uma parte do poema “Saudades da Terra” :

“O bordão liso do passado

Numa esquina do meu quarto

Parece acentuar o meu desejo

(Se o pudesse fazer) de voltar lá

Para matar saudades e pagar promessas

E sentar-me no Rossio

Sem baleeiros agora.

Talvez, se houver saúde, um dia destes…”

Hoje, Alfredo Luís voltou ao Rossio. 99 anos depois do seu nascimento…

*NR

Texto apresentado numa homenagem feita pela freguesia da Fajãzinha da ilha das Flores a Alfredo Luís, em Julho de 2002 quando um grupo de alunos da Califórnia visitou a ilha das Flores acompanhados por dois professores e pela Direcção Regional das Comunidades.  Nessa Homenagem lá estava todas as 97 pessoas que compõem esta freguesia.  A visita, co-organizada pela Professora Gabriela Silva, com a colaboração da freguesia, constou de boas-vindas pela Filarmónica, sessão solene evocando Alfred Lewis, visita à Casa do Poeta durante o pôr do sol, jantar com as comidas típicas que os escritor descreve na sua poesia e os famosos bailes do Rossio que ele tão bem descreveu. 

We thank the Luso-American Education Foundation for their support.

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