Alfred Lewis – Uma alma atlântica em terras californianas (An Atlantic Soul in California Soil)

(Alfred Lewis artwork by poet RoseAngelina Baptista)

Esta semana iremos prestar homenagem ao escritor Alfred Lewis, natura da ilha das Flores, e que viveu mais de 75% da sua vida no Centro do Vale de São Joaquim, aqui na Califórnia. Teremos uma série de textos sobre o poeta/escritor e alguns textos de próprio autor. Terminaremos na sexta-feira, com um ensaio da poeta e co-curadora da série Alfred Lewis Bilingual Reading RoseAngelina Baptista, a quem agradecemos toda a sua colaboração e dedicação. Alfred Lewis faleceu nesta segunda semana de janeiro do ano de 1977.

This week (January 6th-10th of 2025), Filamentos by Bruma Publications from the Portuguese Beyond Borders Institute (PBBI at Fresno State) and with the collaboration of the Luso-American Education Foundation, will present a tribute to Alfred Lewis, an Azorean writer who spent the majority of his life in the Central San Joaquim Valley. We will feature essays in Portuguese and some works in English from an array of writers and poets, ending with an essay from poet RoseAngelina Baptista, co-curator of the Alfred Lewis Reading Series.

As Cores Na Poesia De Alfred Lewis por Álamo Oliveira, poeta

Já quem de direito referiu que a saudade é tema obsessivo na poesia de Alfred Lewis.  É -o, de facto.  A sua situação de emigrante tornou óbvio o desenvolvimento desse sentimento.  Mas é também tema frequente em toda a lírica portuguesa, desde as medievais Cantigas de Amigo ás mais recentes composições poéticas.  E não será sentimento especificamente português, apesar de razões psicológicas (porventura, genéticas até) para que a saudade, em Portugal, tenha outra dimensão – dimensão que assenta na andarilhagem e que contribuiu para a afirmação da própria língua.  Já no século XIII se escrevia esta palavra, grafada soidade e suidade; soledade no século XV e, pela primeira vez, saudade.  Mais recentemente, escrever-se-ia saudade, com u temido, para que se pronunciasse saudade (como os açorianos pronunciam) e não saudade á moda continental.  Quem andarilho e platonizou como o povo português, tinha que criar uma palavra específica para designar tanta apartação e tanto amor impossível.  O seu conteúdo significaste é de tal forma expressivo que, desde logo, se popularizou, permanecendo pelos séculos fora sem dar azo a tornar-se arcaísmo.

Também já se disse que a poesia de Alfred Lewis não fala, apenas,  de saudade, mas de um quotidiano que lhe deu muitos motivos de escrita – motivos,  por vezes circunstanciais, mas que valem a pena reter e saborear.  Acima de tudo, há que aceitar que a poesia de Lewis acontece sob o domínio dos sentidos.  Está por demais presente a referência aos sons, aos sabores, aos cheiros, ás cores, ao tacto, imprimindo, de forma ora impressionista ora expressionista (acrescente-se ainda:  ora naturalista ora realista), uma espécie de espaço cenográfico, tridimensionado e pleno de um figurativismo minudente.  Lewis cultiva também o seu sexto sentido ao revelar sentimentos do foro íntimo, não deixando de os enroupar com expressões utilizadas pelos sentidos comuns.

Cada poema de Lewis poderá ser tido como quadro pintado, mesmo que não caiba no conceito usual de pintura a percepção dos sons, dos cheiros e dos sabores que, nele, abundam.  Porém, há quem pinte escrevendo e vice-versa e parece que Alfred Lewis teria, pela pintura, uma predilecção especial.  Escreveu, na sua autobiografia, que os últimos anos eram de trabalhos no pomar, de escrita e de pintura, embora não conheça notícia de quem tenha ou visse um quadro dele.  As cores e a tela aparecem em muitos dos seus poemas e o livro que preparou para publicação chamar-se-ia Aguarelas Florentinas.

Seria um título redutor para uma poesia que se apoia na amplidão dos sentidos e no descrever espaços que se sentem habitados.  A paisagem não é descrita como natureza morta: ele está animada por pessoas com nome próprio,  por animais domésticos, por vegetação, por sopros de vento, cheiros, sons e sabores e situa-se num lugar específico.  Tudo isto é expresso cm uma linguagem simples e delicada, onde a imagem e a metáfora surgem encadeadas de forma natural, nunca esforçadas nem encobertas por subentendidos.  Daí a capacidade desta poesia comover o leitor.  Há nela sentimentos em que a interioridade se metaforiza sob o decalque do genericamente aceite, como: Recordar é viver a vida morta (p. 198).  O que há de pleonástico esvai-se com a palavra <<morte>>.  O mesmo se diga quanto á saudade, a merecer um desfiar ininterrupto de imagens:  A dor que pisa mais é a ausência:/ Aquele silêncio vibrante/ que em horas mortas bate á minha porta;/ Deita em meu colo as coisas do passado. (p. 291).  E há uma descrição estranha das ilhas dos Açores, vendo-as como nove, negrinhas, com frio,/ Engrinaldadas de espuma/ com chapéus brancos de bruma (p. 286).  A velhice é descrita como linhas incertas cortaram-lhe a cara (p. 97), sendo importante referir que as rugas cortam, não sulcam, emprestando-lhe uma densidade dramática mais impressiva.  O dia, como sucessão da noite e vice-versa, apresenta variantes que merecem referência: a cortina da noite chaga cedo;/ O sol cansado deixa a gente (p. 149).  Curioso que a <<cortina de noite>> não caia, mas sim <<chegue>>; que o sol <<deixe>> e não desapareça na linha do horizonte. Outras formas de anunciar a noite: Ate que o sono bata a porta e entra (p.79); A voz da noite e nova  (p.258). O dia, por sua vez, pode ser anunciado assim: a noite vai enrolar a sua manta (p.88); Um galo canta madrugada (p.87). Do interior das casa da ilha, sobressaem memórias que não tem paralelo com qualquer vivência americana. Lewis regista essa impossibilidade de forma inconfundível: da chaminé, sai o fumo/Em cordas peneirado pelo vento/ Como farinha a cair no mãe (p.86); a luz par‘cia/ Fazer papões co’a  mobília da sala (p.144); enquanto o vento/ Puxava a voz do mar de vez em quando/ Contra a vidraça azul da nossa casa (p.111). E ainda estas duas memórias lapidares: As moscas dançam, parece, uma mazurka (p.84); Pendurados duma cana/ Rosários de linguiça e morcela(p.74). E um conjunto de referências a actividades domesticas que serve de suporte para enformar ema poesia que tem, pelo passado, a sua principal fonte se inspiração.

A capacidade e imagética e metafórica de Lewis e também notória e notável. As folhas secas e caídas no chão São como búzios de papel (p.95); as flores dão um perfume amarelo (p.123); Os guarda-sóis das suas folhas (dos inhames)/ Faziam manta (p.129); a chuva e definida como Cordas grandes formando-se em ribeiras (p.99); e este patético desinteresse pela vida: Mantilha, leque e um vaso de cravos/ Bocejam a janela (p.268).  Mais duas referencias para fechar <<caça>> às potencialidades Imagéticas e metafóricas da poesia de Lewis: Um comboio suando/ Geme através dos campos/ Em seu atalho de ferro.(p 259); e referindo-se aos soldados: E em  fileira como os pecados do mundo? Passam eles, fantasmas, em marcha (P. 257)È surpreendente a densidade deste movimento sofrido ,insecável , bem diferente em interesse emocional (O comboio que sua e geme e os soldados marchando como fantasmas ou pecados do mundo), mas que  e de grande conseguimento poético.

Da predilecção Lewis pela pintura, ficou não só um poema titulado de <<Aguarela Florentina>>– que, por sinal, não tem grande significado cromático–, mas que , no plural, seria o nome genérico de parte da sua produção  poética.

Não foi gratuita a opção por este titulo. Ele faz emergir a fragilidade da ilha, a inconstância da sua coloração, as sugestões fugidias do passado, a contaminação da saudade, a necessidade de colorir espaços interiores que, imagética e metaforicamente, ganham maior expressividade. Na verdade, a aguarela é um tipo de pintura de matéria pobre, mas de técnica difícil. Não permite sobreposição  de pinceladas; necessita de uma organização cromática exacta e de mão firme.  Trata-se também de um género de pintura que tem o papel como suporte único- papel que se fragiliza com a humidade consentida quer pela sua emersão quer pela passagem do pincel.

Ao procurar organizar-se a  paleta utilizada por  Alfred Lexis, verifica-se o desenvolvimento cromático que lhe empresto , de forma a deixar inteligíveis os seus próprios sentimentos. Ele não foge às cores primárias: O azul , o verde, o vermelho, o amarelo, o preto e o branco- cores que se intensificam ou esmaecem de acordo com o grau de emoção, , misturadas pacientemente como se de verdadeiros pigmentos se tratasse. E veja-se a escala de tonalidades. O  vermelho gerará o rosa , o púrpura, o rubro, o sangue, o rubicundo,  o carmim , o roxo; o amarelo a terra-cota, o loiro, o dourado: o azul a safira; o verde o viridente; o branco a neve, o nívea, a gaze leve, a prata; o negro o luto, o  viúvo, o azeviche, o chumbo, o cinzento. Esta paleta enriquece-se sempre que as suas tonalidades são adjectivadas com <<desmaiadas>>, <<desbotadas>>, <<pardacentas>>.

Na poesia de Lewis, há colorações, óbvias, como o branco das casas, o céu e o mar azuis, nuvens pardas, noites negras, madrugadas brancas. Navios brancos. Mas há outras que se constituem em delírio de imaginação como: <<Lençol verde do céu>>, <<Cepo branquindo de cinza>>, <<chama de prata rasgava o pano negro (da noite)>>, <<o  seu clarão (do sol) perdendo o fogo>>, <<traçando estrada rubra sobre o mar>>, <<dias de inocência azuis, <<a noite vai enrolar a sua manta>>, <<levando vida tão  azul>>, etc..

Com tudo isto pretende-se recalcar a ideia de que se a poesia de Lewis não logrou conhecer divulgação adequada, tal falha não ficou a dever-se à falta de qualidade. A distância permite entender agora quais as circunstâncias que relegaram esta poesia para o limbo da indiferença. Para além  de ser quase um acto cintra-natura escrever poesia em português no Vale de São Joaquim, há que referir a insegurança dos teóricos de então da Literatura portuguesa, bombardeados com os ismos diários das correntes literárias, que os convulsionavam pela falta de tempo para digerir os anteriores. Não havia tempo para olhar para uma poesia que se ficasse pelos padrões estéticos convencionais. Alfred Lewis foi vítima do seu tempo literário. Pode não ter deixado uma poesia fulgurante,  mas deixou uma poesia viva, sentida, emocionante, formalmente escorreita, capaz de se medir, sem perder, como muita outra produção poética portuguesa, crítica e publicamente louvada. Quem sabe se, um dia, a poesia de Lewis sai do limbo da nossa indiferença e conhece o lugar ao sol a que tem direito.

                                                                                    Álamo Oliveira, poeta

                                                                     

Texto apresentado no colóquio sobre Alfred Lewis na Universidade Estadual da Califórnia, Stanislaus em Turlock e no colóquio sobre o mesmo escritor na Universidade da Califórnia em Berkeley.

Nota: para a elaboração deste texto, foi consultado o livro Poesias, de Alfred Lewis, com introdução e fixação de textos por Donald Warrin, edição da ex-Direcção dos Serviços de Emigração, Angra do Heroísmo, 1986.                                     

Texto Incluido no livro Alfred Lewis: Escritor de Emoções (DRC, 2002).

Agradecemos o apoio da Luso-American Education Foundation

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