Ao meu amigo João Freitas, fotógrafo, amante do Circo e da sua Calheta perdida e que me fez recordar o Gigante!
Há vidas que não cabem num conto.
Das memórias mais ternas que guardo da minha infância estão os dias que antecediam o Natal. Meu Pai ajudava-nos a decorar a árvore e a fazer o presépio. Não havia televisão na minha ilha naqueles anos sessenta do século passado. E feitas as decorações natalícias, sentava-me ao seu lado a ouvir as histórias que me contava. Foi assim que pela primeira vez ouvi falar do Gigante e das suas proezas. Que tinha tanta força que travava dois camiões com os braços e que em Lisboa atravessara o Tejo preso apenas pelos dentes num cabo de aço. Como sonhei então com a força do gigante e de como ele arrastara multidões em todo o mundo para o ver e aplaudir.
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O gigante nascera ainda no século dezanove em plena monarquia. Mais precisamente faltava vinte anos para o final do século e trinta para a chegada da República. Num tempo em que Ponta Delgada não tinha ainda marginal nem porto comercial, as ruas eram estreitas e mal iluminadas, percorridas ainda por caleches puxadas a cavalos com cocheiros bêbados de cartola e capelo, uma cidade em que ainda pontificava a varanda de pilatos, as pontes dos ais e o aterro, assim me contava meu pai. Foi nesse tempo que nasceu o gigante, o Hércules dos Açores.
O João Joaquim fora sempre uma criança grande e forte. Na escola, não obstante, a sua altura e porte que o atirara logo para a última fila da sala de aula na primeira classe, mal aprendera a ler. Tudo aquilo lhe fazia confusão, os números e as palavras na ardósia e no quadro negro e a impaciência do velho Mestre de barba e óculos fortes que por fim dissera ao Pai que o rapaz não servia para o estudo…
Começara a trabalhar criança ainda, como ajudante numa carpintaria da Rua Castilho, onde cedo descobrira que o que lhe faltara na cabeça, sobrava-lhe nos músculos, na ginástica e em provas de força, exibidas no Relvão e no Jardim António Borges em espetáculos de rua e mais tarde nas companhias de circo que passavam pelas ilhas ou em demonstrações em pequenas feiras e teatros.
Como muitos ilhéus, embarcou clandestino, num navio a vapor, o Dona Maria, a caminho de Boston onde desembarcou sem dinheiro e sem dizer uma palavra em inglês. Na terra do tio Sam foi trabalhar como todos os outros que ali chegavam, para uma fábrica de tecidos. As oportunidades começaram a surgir, quando carregou quase sozinho uma pesada máquina acabada de chegar ou quando fazia o trabalho braçal de três homens levantando com uma mão ferros e objetos pesados. A força com que a natureza o dotara e o que aprendera com outros artistas de circo nas ilhas, rápido lhe permitiu passar para a exibição pública da sua força. Convidaram-no para o Five cents Show (assim chamado pelo preço do bilhete de entrada), espaço onde os espectadores podiam ficar o tempo que quisessem, a assistir à exibição de vários artistas e depois para o Ten cents Show onde já recebia por dia, o mesmo que numa semana na fábrica. Depois passou para o Boston Theater anunciado como The Portuguese Hercules e dali para Nova York, a ganhar 2500 dólares por semana, uma fortuna ao tempo…

Nova York naqueles loucos anos vinte do século passado, estava em crescimento pujante, da tecnologia à economia, a cidade respirava riqueza e conforto. Subiam no céu os arranha-céus que viriam a moldar o perfil da cidade, o dinheiro corria a rodos entre negócios, fossem eles quais fossem, mais ou menos legais. Milhares de emigrantes afluíam à cidade todos à procura de uma oportunidade. O João exibia-se diariamente nos teatros e fora deles, atravessando o Hudson até Brooklyn preso num cabo de aço pelos dentes, perante o pasmo dos mirones e os flashes dos fotógrafos que traziam ao jornal a notícia, antes de ele logo depois encher os teatros com um público delirante que aplaudia as proezas de uma força nunca vista.
Era o tempo em que a Mafia se instalou na cidade, controlando o porto, os sindicatos e tudo o que metia dinheiro de Brooklyn a Lower East side, negócios divididos entre as cinco famílias onde pontificavam entre outros os famosos Torrio, Al Capone, e Lucky Luciano.O jogo e os clubes noturnos em especial de jazz, não escapavam a essas famílias de mafiosi que controlavam a venda ilegal de álcool, a prostituição da mais baixa à mais fina, o mesmo valendo para o Boxe e para as apostas. Um dia numa barbearia de Brooklyn onde paravam portugueses, irlandeses e italianos, desafiaram o Portuguese Hercules, o John (João Joaquim), para um combate de boxe onde podia ganhar muito dinheiro…muito mais do que nos espetáculos.
Ele nunca lutara, mas tinha força e aprendera os princípios básicos do boxe com um ginasta francês de circo que o ensinara quando rapaz, ainda na ilha. Talvez tenha sido o dinheiro ou talvez porque não tivesse família nem nada a perder, aceitara o desafio. O combate seria com um negro encorpado, um peso pesado temível de mais de cem quilos e músculos de aço, vencedor de muitos combates e cara de poucos amigos, um tal de J.Jackson.O combate foi em Brooklyn e ao redor do ringue entre o inúmero público, compareceu a comunidade portuguesa para o apoiar. O gigante foi no início golpeado várias vezes com potentes murros até que com um direto no temporal direito de Jackson, deitou-o ao chão. Dramaticamente Jackson estava morto. O gigante que tinha o coração de uma criança sentou-se então no ringue a chorar…
Apesar do dinheiro do prémio e de nada lhe ter acontecido, foi aconselhado a desaparecer de Nova York por uns tempos. Foi pra o Royal Circus que corria os Estados Unidos nas suas vistosas carruagens de comboio próprio, usando a linha férrea para cruzar o país. Os principais artistas ficavam alojados em Hotéis modestos, nas cidades visitadas. Atravessara o País e atuara já nas grandes cidades de Little Rock no Arkansas,a Saint Louis, Filadélfia, Baltimore e a Chicago quando chegaram a Colon pequena cidade do Michigan. Da companhia do Royal Circus fazia parte a dupla de palhaços mexicanos e um ilusionista Húngaro que ficaram alojados tal como ele, no mesmo Hotel. O Circo atuava no Teatro local já que as tendas não aguentavam os Invernos rigorosos da América. A cidade enchera-se de cartazes com o Gigante, o Hércules Português, segurando a escada romana em que levantava dez homens ao mesmo tempo, as cores garridas dos palhaços, o casal russo trapezista e o Mago Magiar de capa negra e cartola na mão. Ficaram todos alojados num bed and breakfast por cima de uma padaria na Collins Street. A neve caía sem cessar e antevia-se um daqueles fortes nevões que põem o dia como se fosse noite. As ruas estavam geladas e as casas cobertas de branco. O teatro encheu-se uma semana inteira de crianças com os Pais e a magia do Circo fez uma mais o seu efeito, em vésperas de Natal. No dia em que previam partir, caiu o Blizzard anunciado nas rádios e jornais dias antes. A eletricidade faltou, as casas iluminaram-se com velas e houve mesmo quem desfizesse móveis para acender as velhas caldeiras de ferro desativadas no basement das casas, para sobreviver ao frio. No bed and breakfast onde estava, naquele primeiro andar por cima da padaria, João acordou um dia de manhã com o cheiro a pão fresco e bolos, vindo da loja em baixo. Desceu à cozinha onde havia tartes de maçã e pumpkin cheese cake entre muffins com passas e donuts recheados… tudo acabado de fazer. Em conversa com a pasteleira, uma velha negra e gorda sempre sorridente e com a ajuda do palhaço mexicano que entendia um pouco de português, falou do bolo de Natal que se fazia nas suas ilhas. Só com frutos secos, canela e melaço de cana, manteiga, ovos e fermento e muito pouca farinha, frutas cristalizadas e vinho de porto que por não existir naquelas paragens, a pasteleira substituiu logo por rum…
Aguenta meses esse bolo-dissera o João! A pasteleira anotava em inglês a receita.
A neve bloqueou por dias a cidade e a Companhia de Circo passou o Natal em Colon.
Dois dias depois a pastelaria mandou para o circo duas dezenas de bolos de Natal feitos pela receita de João, cobertos de nozes americanas (pecan nuts) e frutas cristalizadas, oferta para todos os elementos da Companhia. Os artistas combinaram que onde quer que andassem, todos os anos, encomendariam pelo Natal aquele bolo especial da Collins Bakery e o tornariam conhecido. Poucos meses depois o Gigante deixou a Companhia e embarcou para a Irlanda com um contrato para integrar uma Companhia de Circo Irlandesa a que se seguiram atuações no Reino Unido, França, Itália, Hungria e Roménia. Em Espanha foi assaltado e roubaram-lhe todo o dinheiro que tinha guardado numa mala. Ganhava muito e gastava ainda mais. Todos os anos meses antes do Natal, enviava cinco dólares para o Michigan, para o bolo de Natal que chegava mais de dois meses depois, no início de dezembro, todos os anos para um País e um endereço diferente. A gente do Circo passou a palavra entre outras companhias espalhadas pelo mundo, do Circo de Moscovo ao do Mónaco, das Companhias Francesas às Húngaras e Espanholas e um pouco por toda a América. Três meses por ano a pastelaria não tinha então mãos a medir, graças aos amigos do Circo daquele Natal distante e a muitos outros que se lhes juntaram, com encomendas mais ou menos numerosas, feitas de toda a parte das Américas e da Europa. A padaria passou a ter dezenas de pasteleiras que todos os anos confecionavam centenas de bolos de Natal e o enviavam para todo o mundo. De cadeias de Hotéis famosos, a Circos e Teatros e até para Casas Reais Europeias.
João, o Hércules Português, viveu muito tempo em Lisboa onde abriu um ginásio e não voltou à América, até que o coração o traiu e não pôde mais trabalhar. Regressou à ilha, pobre, sem sustento e sem família. Bastar-lhe-ia o que ganhara numa semana em Nova Iorque, para ter agora um fim de vida tranquilo. Mas perdera tudo e tudo gastara. Já há três anos que deixara de encomendar o famoso bolo de Natal. Não tinha dinheiro sequer para os remédios. A doença agravara-se e vivia de doações dos seus inúmeros fãs e da boa vontade deste mesmo jornal que publicara as suas memórias e organizava espetáculos para recolha de fundos.
Estava cada vez mais fraco. Qualquer movimento que fizesse dentro de casa, provocava-lhe um enorme cansaço. Deixara de sair. Perdera muito peso e massa muscular. Não era mais o gigante, o Hércules Português e o rosto empalidecido e magro, tornava-o irreconhecível para quem o vira nos Teatros e nos Circos com uma força prodigiosa ou nos cartazes, pelas paredes das cidades de todo o mundo.
Faltava uma semana para o Natal que já deixara de celebrar. O tempo era agora preenchido a recordar tempos de glória, já que a memória não se paga, os tantos amigos de todo o mundo com quem se cruzara e os companheiros de aventuras impossíveis. Tinha pouco mais de sessenta anos, mas sentia que o fim estava a chegar.
Era perto do meio dia quando bateram à porta. Como não se levantara para abrir, alguém puxou do lado de fora o cordão que puxava o trinco e entrou. Era o carteiro, com o capote encharcado da chuva que caía intensa já há dias. Trazia um envelope pardo cheio de selos e carimbos, com um destinatário quase sem endereço…John J.Azevedo e abaixo Azores Hercules- Portugal. Fora suficiente para chegar à pequena casa da Travessa de São João.
Logo que abriu a Caixa reconheceu o bolo da Collins. Vinha numa bonita lata ilustrada com bonecos de neve. Dentro um cartão… Merry Christmas my friend!

Como todos os Contos de Natal também este é inspirado na sua maioria, em factos reais. A imaginação juntou o resto…
Lopes de Araújo
Natal de 2024 (in Diário dos Açores)
