
Pode estimar-se que o ano tenha sido o de 1441, conquanto não seja legítimo dar-se clara certidão de tal, pode ter sido uns poucos anos antes ou depois. Fiquemo-nos por 1441, é bom ano, capicua, indiciando benigna fortuna.
Já antes mandara o Infante D. Henrique que se laçasse gado miúdo na ilha do Arcanjo e em outras, das sete à altura achadas, isto porque, certamente, lho concedeu seu sobrinho, D. Afonso V, em nome de quem era pessoa mandante o Infante D. Pedro, dado o rei não haver idade para se ocupar do governo de uma nação, muito menos sendo ela tão insigne como Portugal. Também lhe concedeu seu sobrinho que, se lhe aprouvesse, mandasse povoar as ditas ilhas. Folgou, é de crer, o Infante D. Henrique e ordenou que se embarcassem gentes para as ilhas, o que veio a acontecer por intermédio de Gonçalo Velho, o qual capitaneou as caravelas que se fizeram, audaciosas, ao mar e, depois, as duas ilhas a oriente achadas. Aportaram algumas dessas gentes à ilha de Santa Maria e outras tantas, supõe-se, à ilha do Arcanjo S. Miguel, e estas viajaram na caravela Madre de Deus, nome, se não certo, muito provável de haver caravela quatrocentista.
Também é de crer que o dia da chegada dos povoadores, gentes pobres, quiçá miseráveis, cujos horizontes se ampliaram na expetativa de terra pródiga a encontrar para além do mar, onde haveriam, certamente, menos fome do que nas suas exíguas terras, tenha sido 29 de setembro, dia este de reverenciar o Arcanjo S. Miguel, o que pode explicar o nome que a ilha tomou. Creia-se, igualmente, que o nome tomado pela ilha tenha sido da lavra de Gonçalo Velho, mas certo é que o infante regente, D. Pedro, irmão do infante D. Henrique, havia particular reverência por tal arcanjo, o que também é boa razão para ser dado à ilha o nome de S. Miguel.
De setembro a dezembro fizeram os homens reconhecimento da terra, isto no lugar onde aportaram, e foi este o que se veio a chamar Povoação. Era formoso tal lugar, havendo, para além da enseada onde fundeou a Madre de Deus, arvoredo em abundância e boas águas, estas mansas e de transparência em ditosas ribeiras. Acreditaram os homens que era aquelo sítio o que mais se assemelharia à Terra Prometida, até porque lhes fora prometido que ali não haveria fome, esse trágico espetro dos pobres, mas abundância, palavra contornada de benigno sortilégio para quem houve fome toda a vida e viu os filhos carpirem por míngua de pão.
Muito trabalharam os homens, mais rudes se volveram as suas mãos, que já muito o eram, a fim de que a terra pudesse vir a acolher sementes e essas viessem a saciar a fome que do Reino traziam. Ali não a sentiam, pois aos animais antes lançados, que muito se reproduziram, era fácil deitar a mão e, depois de postos ao fogo, mais fácil ainda era comê-los – bento seja o Senhor por assim saciar a fome aos seus filhos, que já se suponham em abandono no Reino e ali mais manjar encontravam do que podia haver em mesa sumptuosa de rei. Mesas é que as não havia, posto que se abrigavam os homens em cafuas, por eles toscamente levantadas, e comiam sentados sobre troncos, não sendo por tal que as viandas tinham sabor menos aprazível.
E a primeira mesa a ser construída na ilha foi a da comunhão, que Frei Inocêncio das Chagas de Cristo, vamos acreditar ser tal o nome do clérigo, mandou que fosse feita por razão de celebrar o Natal com a dignidade que merece o dia em que foi nado o Redentor. Não sabiam os homens medir o tempo com precisão, salvo distinguirem o dia, que era todo de trabalho, da noite, que era de sono sem sobressaltos, tal a exaustão sempre determina. De que quase três meses se haviam cumprido não tinham eles conhecimento, pois eram os dias tão iguais uns aos outros que sempre o mesmo, e tão alongado, pareciam ser. Foram, porém, tomados de ledice, em sabendo que se comemoraria o Natal, porquanto tal dia havia de ser de folgarem, não de trabalharem.
Aparelhou a mesa Frei Inocêncio das Chagas de Cristo e fê-lo com desvelo, bebeu vinho do cálice para se certificar que era da qualidade exigida para se transmutar em sangue sagrado, não provou o pão porque lhe conhecia o sabor, pouco agradável, porque ázimo e velho. Não houve luzes nem pinheiro enfeitado, que ali não havia pinheiros nem candeias para os aluminar; não houve, outrossim, representação das figuras do presépio, que, para aquela terra tão nova, só se havia levado coisas de que careciam as gentes para as necessidades do corpo. Da alma também, naturalmente, por tal ali era Frei Inocêncio das Chagas de Cristo e as alfaias necessárias para ele oficiar missa.
Postos os homens em silêncio, Gonçalo Velho falou-lhes, e fê-lo do coração: aquela seria uma terra de ledice e de justiça, de abundância e de prosperidade, assim os homens trabalhassem com afinco que igualasse a fertilidade da terra, a qual, notava-se pela prodigalidade da vegetação, era incomensurável. Disseram ámen os homens e ouviram a missa atenta e piedosamente, como convém e é grato ao Senhor. Nada entenderam, pois não conheciam palavra de Latim, em excetuando Gonçalo Velho e, naturalmente, Frei Inocêncio das Chagas de Cristo, que em Latim oficiava as missas, sendo muito letrado nessa língua. Já do sermão, que se seguiu, cada um tirou suas conclusões, e todos creram firmemente nas palavras de Frei Inocêncio das Chagas de Cristo quando ele lhes disse qua a Deus muito aprazem os homens a quem encharca o suor do trabalho e que deles seria o reino presente e o futuro, bem-aventurança esta que a criatividade do clérigo juntou às outras do Sermão da Montanha.
No ânimo de todos eles, contudo, já uma nódoa se ia instalando, pequena era ainda, mas o tempo encarregar-se-ia de a fazer alastrar, como sempre acontece. Era a nódoa da inveja, dirigida contra aquele homem, o mais jovem e formoso, conquanto rijo de musculatura, de seu nome Cristóvão, que Gonçalo Velho escolhera para coadjuvar Frei Inocêncio das Chagas de Cristo na missa – porquê ele e não eu? mostra Gonçalo Velho que mais o estima do que aos outros, do que a mim, que tanto trabalho como ele, ou mais, decerto mais; vale mais o suor dele do que o meu? valho eu menos do que ele?
Terminados missa e sermão, não disse o clérigo “ite missa est”, como ordinariamente fazia, pois dali ninguém sairia. A mesa que servira para altar onde se mostraram o corpo e o sangue do Salvador serviria também para se deitarem os animais já preparados e postos ao lume, mais do que os costumeiros, mas, ainda fossem tantos quanto os costumeiros, bem bastariam aos homens. Vinho igualmente o houve, não em abundância, que o vindo na Madre de Deus não era para se desperdiçar vãmente, mas o suficiente para se sentirem os homens com leda disposição. Comeram e beberam e folgaram, cantando canções e disputando forças em jogos, mas cada um guardava consigo o sentimento que começava a enrijecer, tal erva daninha em campo mal lavrado, e era este a inveja tomada contra Cristóvão, que culpa alguma havia para despertar malquerença, mas também sem culpa foi levado o Salvador à cruz.
O dia que a esse se seguiu foi igual aos que o antecederam e aos que o haviam de seguir. Houve comemoração do Natal e, por via dela, tomou, vamos acreditar que sim, maior fôlego a esperança no ânimo dos homens. Despertou, porém, no coração deles, um sentir que já lá era em estado latente, mas inteiro, pois trata-se de coisa a que ser humano algum se exime. Despertou aquilo que, mais cedo ou mais tarde, se alberga no coração de todos os homens, pois nunca um homem é capaz de ver outro em situação mais favorável do que a sua sem que se tome de inveja por esse homem. Caso para se dizer que o primeiro Natal na ilha do Arcanjo foi tal o são todos os Natais em qualquer lugar e em qualquer tempo, e que o dia natalício do Redentor é, bem feitas as contas, tal o são todos os outros dias em qualquer lugar e em qualquer tempo.
Paula de Sousa Lima, Natal de 2024 (escritora com uma impressionante obra publicada, e em breve com um dos seus romances em inglês)

